A Integração Ensino-serviço no Contexto dos Processos de Mudança na Formação Superior dos Profissionais da Saúde

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                    A Integração Ensino-serviço no Contexto dos
Processos de Mudança na Formação Superior
dos Profissionais da Saúde
Service-learning in the Context of the
Changes in the Undergraduate Education of
Health Professionals
Verônica Santos AlbuquerqueI
Andréia Patrícia GomesI
Carlos Henrique Alves de RezendeII
Marcelo Xavier SampaioIII
Orlene Veloso DiasIV
Regina Maria LugarinhoIII

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre a integração ensino e serviço a partir das discussões de um grupo
multiprofissional de um curso de especialização para ativação de mudanças na formação superior em
saúde. Além das reflexões do grupo, o texto traz interlocuções com referenciais teóricos sobre aspectos
que envolvem a integração ensino-serviço. São abordadas as relações da integração ensino-serviço com
a formação superior dos profissionais de saúde, com os modelos tecnoassistenciais, com a prática do
cuidado em saúde, com o trabalho em equipe e com a educação permanente.

– Ensino;
– Serviços de saúde;
– Profissionais de saúde;
– Cuidado de saúde;
– Educaçao médica.
KEY WORDS

ABSTRACT

The aim of this article was to propose a reflection about integration of healthcare services and teaching
based on the discussions of a multi-professional group of a specialization course for promoting changes
in the undergraduate education of health professionals. Besides the group reflections, this text presents
references of theoretical nature about combining healthcare service and teaching. The article approaches
the relations between service-learning and undergraduate education of health professionals, healthcare
models, healthcare services, teamwork and continuing education.

– Teaching;
– Delivery of Health Care;
– Health professionals;
– Healthcare practice;
– Medical education.

Recebido em: 15/10/2007
Aprovado em: 15/12/2007

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA

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I

Fundação Educacional Serra dos Órgãos, Rio de Janeiro, Brasil.

II

Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.

III

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

IV

Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil.

Verônica Santos Albuquerque et al

A Integração Ensino-Aprendizagem

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo nasce da sensibilização dos autores para a discussão de questões que envolvem a integração ensino-serviço
no contexto dos processos de mudança na formação dos profissionais de saúde.
Entende-se por integração ensino-serviço o trabalho coletivo, pactuado e integrado de estudantes e professores dos
cursos de formação na área da saúde com trabalhadores que
compõem as equipes dos serviços de saúde, incluindo-se os
gestores, visando à qualidade de atenção à saúde individual e
coletiva, à qualidade da formação profissional e ao desenvolvimento/satisfação dos trabalhadores dos serviços.
O conteúdo do texto apresentado teve sua origem na
construção coletiva de um dos grupos do Curso de Especialização em Ativação de Processos de Mudança na Formação Superior de Profissionais de Saúde, promovido pelo Ministério
da Saúde em 2005/2006. O grupo foi constituído por três médicos, duas enfermeiras e um biólogo, inseridos em processos
educacionais, de gestão e de atenção à saúde em instituições
públicas e privadas nos municípios do Rio de Janeiro (RJ), Teresópolis (RJ), Uberlândia (MG) e Montes Claros (MG).
O grupo refletiu presencialmente e à distância sobre sua
própria prática, reconhecendo suas fronteiras de conhecimento, formulando questões, buscando e analisando criticamente
novas informações e elaborando estratégias para enfrentar
problemas. A produção do grupo foi abrangente, e o presente
artigo aborda os aspectos relacionados às reflexões sobre a integração ensino-serviço, assim como os referenciais utilizados
para o embasamento teórico de tais reflexões.
Buscou-se abordar a integração ensino-serviço e sua relação com a formação superior dos profissionais de saúde, com os
modelos tecnoassistenciais, com a prática do cuidado em saúde,
com o trabalho em equipe e com a educação permanente.
OS ESPAÇOS DE INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO
COMO CENÁRIOS PRIVILEGIADOS NA FORMAÇÃO
SUPERIOR DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Diversas são as perspectivas de mudanças na formação
dos profissionais da saúde, as quais incluem a reflexão e transformação da interface ensino/trabalho, ou seja, das relações
entre o ensino e os serviços de saúde. Para Henriques1, temse visto movimentos na direção de transformações dos velhos
modelos de ensino para formação na saúde, os quais se mostram incapazes de responder adequadamente às necessidades
apresentadas pela população. Tais movimentos oscilaram, ao
longo das duas últimas décadas, na intensidade e na concentração nas diferentes áreas profissionais1.

Neste sentido, a formação e o trabalho dos profissionais
de saúde na América Latina vêm sendo decisivamente impactados pela reorganização dos sistemas de saúde, pelas
pressões para a reforma da universidade e pelo processo de
reforma e descentralização político-administrativa do Estado.
As iniciativas comprometidas com a relevância social da universidade e dos processos de formação no campo da saúde
têm historicamente procurado articular esses dois contextos,
aparentemente desconectados — universidade e serviços —,
buscando ligar os espaços de formação aos diferentes cenários
da vida real e de produção de cuidados à saúde2.
Considerando a experiência acumulada nos últimos quarenta anos, particularmente no campo da educação médica, e
reconhecendo a inadequação dos modelos de formação para
enfrentar os desafios atuais da atenção à saúde, é formado no
início dos anos 1990, por iniciativa da Fundação Kellogg, o
Programa UNI (Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde — União com a Comunidade). Sua proposição central se baseou na relação de parceria entre a universidade, os serviços locais de saúde e a comunidade, como
o alicerce sobre o qual devem estar fundados os processos de
transformação da educação dos profissionais e dos sistemas
de saúde. Até então, esses atores estabeleciam entre si relações bilaterais, expressas pela Integração Docente-Assistencial
(universidade-serviços), pela Extensão Universitária (universidade-comunidade) e pela Atenção Primária à Saúde (serviços-comunidade). O UNI propõe, em contraposição, articular
esses três atores num sistema mais complexo e orientado para
a inovação das práticas de saúde e da formação profissional2.
Uma análise do Programa UNI permite observar explicitamente uma de suas virtudes: aquela que assume que o processo é de construção e de desconstrução permanente. Nesse
caminho, são abordados os avanços inquestionavelmente alcançados, destacando-se a conformação dos projetos enquanto
espaços de construção democrática e a conformação de sujeitos
orientados por projetos coletivos que resgatam valores como
a solidariedade e a responsabilidade compartilhada. Cabe ressaltar um dos conceitos criticados, o de parceria, apresentada
como substantiva, horizontal e igualitária entre os componentes (academia, serviços, comunidade). Não foram consideradas
as desigualdades de poderes e saberes entre estes componentes, assim como as contradições delas decorrentes. A realidade do desenvolvimento dos projetos revelou, rapidamente, as
disputas ocorridas no interior da academia, dos serviços e da
comunidade, como nos espaços de negociação entre eles2.
Langaná, em 1986, já apontava, como um dos entraves
para a interação ensino-serviço, a metodologia baseada na
transmissão de conhecimentos, com maior ênfase no ensino
do que na aprendizagem, ou seja, reforçando a idéia de que a

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universidade não tem outro papel e/ou compromisso com a
sociedade a não ser o de criar, preservar ou transmitir o saber,
deixando de lado a missão de atuar na produção de serviços3.
Olschowsky4 complementa, apontando as políticas e estruturas dos serviços de saúde e de ensino como outro fator dificultador dessa interação, já que, muitas vezes, impossibilitam a
participação mais efetiva tanto dos profissionais assistenciais
como dos docentes na integração ensino-serviço.
Ganha destaque, nesta contextualização da integração
ensino-serviço, a discussão de redes como espaços de conformação de um novo ator social. No Brasil, a participação da
Rede Unida no processo de definição das diretrizes curriculares, promovido pelo Ministério da Educação, exemplifica o
potencial desta articulação. Cabe ressaltar que o enfoque integrado das mudanças organizacionais que tiveram lugar na
academia, nos serviços de saúde e nas entidades comunitárias
mostra, com clareza, como pode ser fecunda a análise dos processos de transformação das práticas de saúde, quando assentados na interdisciplinaridade2.
Cabe ressaltar, ainda, que algumas políticas públicas, como
as formuladas pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGETS), do Ministério da Saúde, apresentaram
recentemente possibilidades que se abrem para um conjunto de
debates que têm permitido avançar em reflexões e proposições,
e que não raro geram novos desafios para continuarmos nossa
luta para configurar, nos serviços e nos cursos da área da saúde,
os ideais de sociedade justa, ética e igualitária1.
Os espaços onde se dá o diálogo entre o trabalho e a
educação assumem lugar privilegiado para a percepção que
o estudante vai desenvolvendo acerca do outro no cotidiano
do cuidado. São espaços de cidadania, onde profissionais do
serviço e docentes, usuários e o próprio estudante vão estabelecendo seus papéis sociais na confluência de seus saberes,
modos de ser e de ver o mundo.
Centrando a discussão nas relações entre ensino e trabalho,
há de se reconhecer que os espaços de interseção entre serviços
e ensino são de grande importância para a formação em saúde
e para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Neste
sentido, Henriques1 aborda as conseqüências das práticas que
transcendem os cenários de aprendizagem. O conhecimento ali
construído, a partir da reflexão sobre o vivido em um cenário
de aprendizagem, pode se difundir por intermédio dos sujeitos
que por ali passam como estudantes. Desse modo, são espaços
privilegiados para a transformação e consolidação dos modelos de atenção à saúde, pautados pelos valores do SUS. Mas é
neles onde também se explicitam conflitos, dificuldades, estratégias e táticas desencadeadas para a ocupação de espaços na
rede de cuidados que vai sendo configurada1.

Apesar de todas as possibilidades existentes nos espaços
de integração ensino-serviço, é inquietante perceber que a formação em saúde — que utiliza os serviços da rede pública de
saúde como campo privilegiado para as atividades práticas
que compõem essa formação, seja na modalidade de estágio
curricular ou na de aula prática — tem uma inserção nesses
serviços que se caracteriza por um relativo distanciamento,
um tratamento de certa forma cerimonioso entre os envolvidos, no qual as críticas que tenham ao outro não encontram
canais adequados de expressão. Dessa forma, sem o diálogo
esperado, limitam-se as possibilidades de um fazer diferenciado, que assuma concepções acerca do cuidado, dos processos
e organização do trabalho, da gestão e da escuta do usuário1.
Deparamo-nos com muitos conflitos decorrentes de problemas e dificuldades na interseção desses dois mundos. Há queixas que dizem respeito, muitas vezes, ao fato de a universidade
estar no serviço sem levar em consideração os trabalhadores
que lá estão. Tal crítica se amplia quando entra em cena a percepção de que os objetivos acadêmicos estão definidos a priori
e não podem se afastar da estrutura já estabelecida. Ou, ainda,
que não há participação do profissional do serviço, a não ser na
supervisão do estudante, feita em alguns casos de modo assistemático e solitário, sem uma discussão ou presença mais efetiva do docente. Por outro lado, há críticas à diferença marcante
entre a lógica da organização dos serviços, muito centrada na
produtividade de seus procedimentos técnico-operativos, e a
lógica do trabalho da instituição formadora, muito centrada na
produção de seus conhecimentos teóricos e metodológicos dos
campos pedagógicos e núcleos específicos1.
Não é raro observar docentes mais envolvidos com atividades de pesquisa, colocando em segundo plano a prestação de
cuidados, o que os distancia das situações práticas do cotidiano
e os torna teóricos ineficientes na rotina dos serviços de saúde.
Em contrapartida, os profissionais dos serviços, muitas vezes, se
envolvem de forma profunda com as atividades rotineiras do cotidiano de trabalho, deixando de lado a educação permanente e,
por conseqüência, tornam-se profissionais pouco atualizados5.
Tal desarticulação entre teoria e prática suscita a reflexão
crítica de que a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática, sem a qual a teoria pode ir virando falácia, e a prática, ativismo6. Quando a integração ensino-serviço acontece
de forma efetiva, unindo docentes, estudantes e profissionais
de saúde com o foco central no usuário, esta dicotomia entre o
ensino e a produção dos cuidados em saúde se ameniza.
Sendo assim, é preciso investir na sensibilização dos atores inseridos nos cenários onde se desenvolvem os cuidados
e o processo de ensino-aprendizagem. Operacionalmente, a
universidade deve se preocupar em identificar necessidades
dos serviços e cenários de prática, estabelecendo pactos de

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contribuição docente/discente para tais serviços. Devem estar incluídos nestes pactos: negociação de espaços, horários e
tecnologias para adequação das atividades do serviço e das
práticas educacionais. Além disso, em contrapartida, é fundamental a participação de profissionais dos serviços e usuários
nas discussões educacionais de formação na área da saúde.
É necessário criar mais espaços para a interlocução dos
cursos, serviços, gestores e, principalmente, usuários1. Os
profissionais do serviço devem sentir-se co-responsáveis pela
formação dos futuros profissionais, assim como os docentes
devem considerar-se parte dos serviços de saúde.
Nessa perspectiva, Cecílio7 afirma que a passagem dos estudantes pelos serviços tem uma terminalidade. Para se compreender o que o estudante formará sobre o estabelecimento
de vínculo entre usuários e serviços, representado pela relação
com o profissional que o atende, seria necessário que o professor estivesse no serviço e se sentisse parte dele a ponto de
também se ver representado por tal serviço7.
Sem o diálogo permanente não será possível gerar novas
formas de interferir no processo de trabalho, na organização
da assistência, nem no processo educativo da formação de um
novo trabalhador. É preciso colocar no centro do diálogo o
usuário, que deveria ser o beneficiário dos dois processos que
se engendram nos mesmos espaços1.
A DIALÉTICA DE FORMAR PARA UM MODELO
CENTRADO NO USUÁRIO, INSERINDO ESTUDANTES
NA PRÁTICA SOB A ÉGIDE DE UM MODELO MÉDICO
HEGEMÔNICO CENTRADO NO PROCEDIMENTO
Um dos focos da mudança curricular na área da saúde é
a formação de profissionais para conformação de um modelo
de atenção à saúde centrado no usuário. Porém, a integração
ensino-serviço pressupõe a presença de estudantes em formação e docentes em cenários onde ainda se produz atenção à
saúde sob um modelo tecnoassistencial hegemônico centrado
no procedimento.
Esse modelo predominantemente vigente privilegia a expansão do ensino clínico, especialmente em hospitais, e enfatiza a pesquisa biológica como forma de superar a era empírica
do ensino médico, supervalorizando a especialização médica.
Este modelo foi criado a partir do relatório Flexner, produzido
nos Estados Unidos em 1910 e que mudou o currículo das escolas de medicina, conduzindo a prática médica aos caminhos
da superespecialização8.
Associada ao conhecimento especializado, Franco e
Merhy9 chamam a atenção para a interposição de uma crescente indústria farmacêutica e de equipamentos biomédicos, que
eleva consideravelmente os custos com a assistência à saúde.

Podemos definir esse modelo de atenção à saúde como
“centrado no procedimento”. Isto é, um modelo no qual
o principal compromisso do ato de assistir à saúde é com a
produção de procedimentos. Apenas secundariamente existe
compromisso com as necessidades dos usuários.
O que se busca, atualmente, é fazer o movimento inverso:
substituir essas ações custosas de produção da saúde, baseadas em procedimentos especializados e medicalizados, pelas
ações relacionais, centradas em atitudes acolhedoras e no vínculo com o usuário, buscando o cuidado à saúde e a cura como
finalidade última de um trabalho em saúde que se pauta na
defesa da vida individual e coletiva9.
A busca deste cuidado integral também mantém relação
com o movimento de diversificação de cenários de ensinoaprendizagem, considerada por Feuerwerker10 como uma estratégia para induzir mudanças mais profundas no processo
de formação profissional; um elemento, em si mesmo, constitutivo de uma nova maneira de pensar esta formação. Não
se trata de transformar o espaço dos serviços de saúde e comunidade em prolongamentos dos hospitais-escola, mas, sim,
de construir espaços de aprendizagem com a incorporação de
docentes e estudantes ao processo de produção de serviços,
sem descaracterizar a natureza destes cenários reais.
Neste sentido, a construção de ações e estratégias de controle de doenças e promoção da saúde, de formação de recursos
humanos, de controle social, de educação e de comunicação em
saúde, de integralidade da atenção, de intersetorialidade e de
eqüidade passa a fazer parte das agendas e perspectivas de intervenção de docentes, estudantes e profissionais da saúde10.
Neste contexto, cabe ressaltar o papel do trabalhador sobre
o modo de fazer “a atenção à saúde”: se, de um lado, os fatores
sociais, econômicos e políticos definem em grande medida a estrutura e organização dos serviços, a partir de um lugar próprio
referente aos aspectos da macropolítica, por outro lado, o funcionamento e o perfil assistencial são dados por processos micropolíticos e pelas configurações tecnológicas do trabalho, mediante
os quais ocorre efetivamente a produção do cuidado à saúde9.
O trabalho em saúde traz, como componente importante,
o fato de que, neste setor, o trabalho humano, vivo em ato, é
fundamental e insubstituível. O trabalho ocorre em relações
estabelecidas entre os indivíduos trabalhadores e entre estes e
os usuários. O “autogoverno” do trabalhador de saúde sobre
o modo de fazer assistência, muitas vezes, é o que determina o perfil de determinado modelo assistencial, agindo como
dispositivo de mudanças, capazes de detonar processos instituintes ante a organização de serviços de saúde11. Por este motivo, a mudança de modelos assistenciais requer, em grande
medida, a construção de uma nova consciência sanitária e a

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adesão desses trabalhadores ao novo projeto. É preciso obter
consenso sobre formas de trabalhar que estejam em sintonia
com a nova proposta assistencial, o que não se consegue por
normas editadas verticalmente9. Sendo assim, não é possível
desconectar a proposta de transformação do modelo tecnoassistencial das mudanças na formação dos profissionais de
saúde, com especial destaque, neste sentido, para a integração
ensino-serviço como espaço privilegiado de reflexão sobre o
ensino e a produção de cuidados.
A INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO COMO ESPAÇO DE
REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA DO CUIDADO
A realidade vivenciada pelos estudantes nos serviços de
saúde não deve ser ponto de partida para críticas taxativas a
estes serviços e seus profissionais; deve funcionar como elemento instigador para uma prática problematizadora no sentido da aprendizagem e também da reflexão sobre a produção
dos cuidados.
É importante que a condução de qualquer análise sobre a
relação entre ensino e serviço não busque culpados. Afinal, o
que vemos acontecer hoje nos cenários onde se desenvolvem
as práticas de formação é fruto de anos de construção que foi
traçada, conduzida e consolidada em direções diferentes, com
interesses diversos, embora nem sempre antagônicos1.
O currículo integrado valoriza o espaço de articulação entre ensino, serviço e comunidade como cenário do processo
ensino-aprendizagem, devendo o estudante refletir sobre sua
ação e a realidade em que está inserido, buscando problematizar o seu cotidiano, tomando o que tem para ser aprendido
como mola propulsora do processo de formação, na perspectiva de uma aprendizagem crítica e reflexiva12.
Se considerarmos que os cenários de aprendizagem são
de potencial importância como locus da formação em saúde,
espaços privilegiados para a incorporação da integralidade no
processo de ensino-aprendizagem, a redefinição das práticas e
estágios e do seu local de desenvolvimento ganha importância
e precisa estar identificada com os princípios políticos e pedagógicos definidos pelos gestores e demais atores do processo
educativo. Mas também precisam ser olhados pelos gestores
e atores do processo de produção do cuidado como espaço
concreto em que as mudanças podem acontecer mutuamente,
influenciando e trazendo novos sentidos às suas práticas1,13.
O momento de imersão do estudante no cotidiano dos
serviços pode trazer recursos riquíssimos para o aprendizado do cuidado e da organização dos processos de trabalho
e gestão. Devem-se aproveitar as experiências vivenciadas e
observadas nos serviços durante as aulas práticas e estágios,
como momento pedagógico, para refletir sobre a prática do
cuidado que ali é produzida e suas repercussões, inclusive so-

bre a maneira como se concebe o cuidado e se essa concepção
se afasta ou se aproxima das manifestações presenciadas naquele espaço. É preciso trazer sentidos para a maneira como
a assistência se organiza e desenvolve naquele espaço, onde
também estamos1.
Neste sentido, o Ministério da Saúde chama a atenção
para a formação a partir do processo de trabalho. A formação
para a área da saúde deveria ter como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho e estruturar-se a partir da problematização do processo
de trabalho e sua capacidade de dar acolhimento e cuidado às
várias dimensões e necessidades em saúde das pessoas, dos
coletivos e das populações. A melhor síntese para essa designação à educação dos profissionais da saúde é a noção de integralidade, pensada tanto no campo da atenção, quanto no
campo da gestão de serviços e sistemas14.
Quando discutimos as mudanças que se fazem cada vez
mais necessárias no processo de formação na área da saúde,
torna-se essencial que também nos esforcemos por introduzir a
discussão de forma mais solidária e companheira sobre as necessidades de mudança na organização dos serviços e de como, na
articulação essencial entre os dois mundos — da educação e do
trabalho —, temos que definir princípios e valores éticos acerca
da saúde e da qualidade dos serviços prestados na área. Percebese a necessidade de um olhar mais elaborado para a questão da
interseção entre trabalho e educação, em que os conflitos (dispositivos de poder na construção de modelos e na relação docente/
profissional) presentes nessa interação se devem, parcialmente,
aos objetivos e intenções que movem os dois processos13.
A INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO PAUTADA NO
TRABALHO EM EQUIPE
O processo educacional na formação dos profissionais da
saúde deve ter em vista o desenvolvimento tanto de capacidades gerais (identificadas com a grande área da saúde), quanto
daquelas que constituem as especificidades de cada profissão.
Entretanto, todo processo educacional deveria ser capaz de
desenvolver as condições para o trabalho em conjunto dos
profissionais da saúde, valorizando a necessária interdisciplinaridade para a composição de uma atenção que se desloque
do eixo — recortado e reduzido — corporativo-centrado, para
o eixo — plural e complexo — usuário-centrado.
As propostas de formação e de exercício do trabalho em
equipe multiprofissional já estão colocadas como realidade em
nossa sociedade para a área da saúde, não cabendo legitimidade a qualquer apelo em contrário. Prova disso é a constância da
designação do trabalho em equipe em qualquer circunstância
propositiva de elevação da qualidade do trabalho e da formação em saúde. A orientação do trabalho em equipe consta tan-

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to das diretrizes para a formação dos profissionais da saúde,
quanto das diretrizes para o exercício profissional no SUS15.
Segundo Benevides de Barros e Passos16, a clínica só pode
ser concebida como transdisciplinar e, por isso, deve subverter o eixo de sustentação dos campos epistemológicos e sua
estabilização em unidades disciplinares e em “especialismos”.
Para Ceccim15, este movimento de interseção na equipe multiprofissional de saúde teria, nos recursos e instrumentos terapêuticos de cada corpo de conhecimentos e atos de uma
profissão, a oportunidade de compor e inventar a intervenção coletiva, constituindo-se cada desempenho ampliado ou
modificado em um desempenho protegido pela condição da
equipe, tendo como meta projetos terapêuticos responsáveis
pela resolubilidade das ações e dos serviços de saúde.
No aspecto da formação em saúde e das ações profissionais do cuidado, nos reportamos o tempo todo às transformações que devem se dar simultaneamente nos dois processos.
Mas costumamos falar da perspectiva isolada de cada profissão da área da saúde, quando as mudanças que precisam
acontecer dizem respeito a todas as profissões do campo. E,
para além do modo como essas profissões produzem um cuidado, é preciso resultar para o usuário algo bom na perspectiva de seu desejo e expectativa, e ser mais completo e solidário
nas ações desenvolvidas por toda a equipe1.
O ponto de vista apresentado é o de não haver necessidade de que uma ação profissional se sobreponha à outra, mas
que, ao possuírem aspectos que são diversos no seu campo
específico de saber e de cuidar, são todas igualmente importantes para o usuário, na capacidade de entendê-lo de modo
abrangente, na sua singularidade1.
Algumas questões, que se apresentam com freqüência,
se referem ao modo como os profissionais da área da saúde
não vivenciam, ao longo de sua formação, estratégias que articulem suas atividades e saberes com as dos outros profissionais da equipe. Sempre é referido como um dos momentos
de dificuldade, quando se iniciam as atividades profissionais,
o aprendizado em que se torna necessário compartilhar com
outros profissionais os espaços de atuação e os sujeitos daquela atuação. O aprendizado gera, muitas vezes, situações
extremamente conflituosas nas quais acabam prevalecendo
as vaidades individuais em detrimento de um cuidado mais
qualificado. Diante desse tipo de conflito, torna-se ainda mais
significativo colocar o usuário no centro do debate, pois assim
é possível evocar os valores éticos que servem de justificativa última para a atuação de todos os profissionais de saúde,
criando um terreno comum para o diálogo1.
O espaço de interseção entre serviço e formação é rico em
possibilidades para a produção de novos saberes e práticas e

também para a aquisição de condutas interprofissionais na
produção do cuidado1.
A INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO ARTICULADA
COM O MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO PERMANENTE
Atualmente, não é possível pensar a interface entre ensino
e trabalho sem remeter-se à educação permanente. Neste sentido, é preciso contextualizar a integração ensino-serviço neste
movimento: profissionais de saúde, docentes e estudantes devem estar inseridos nas estratégias de educação permanente,
tendo em vista melhorar a formação e fortalecer o SUS.
Isto porque a educação permanente possibilita, ao mesmo
tempo, o desenvolvimento pessoal daqueles que trabalham na
área da saúde e o desenvolvimento das instituições. Além disso, ela reforça a relação das ações de formação com a gestão
do sistema e dos serviços, com o trabalho da atenção à saúde e
com o controle social17.
Possibilidade de transformar as práticas profissionais
existe, porque perguntas e respostas são construídas a partir
da reflexão de trabalhadores e estudantes sobre o trabalho que
realizam ou para o qual se preparam. A educação permanente
pode ser entendida como aprendizagem-trabalho, ou seja, ela
acontece no cotidiano das pessoas e das organizações. Ela é
feita a partir dos problemas enfrentados na realidade e leva
em consideração os conhecimentos e as experiências que as
pessoas já têm17.
A proposta da educação permanente parte de um desafio
central, coerente com os propósitos da integração ensino-serviço: a formação e o desenvolvimento devem ocorrer de modo
descentralizado, ascendente e transdisciplinar, ou seja, em todos os locais, envolvendo vários saberes. O resultado esperado
é a democratização dos espaços de trabalho, o desenvolvimento da capacidade de aprender e de ensinar de todos os atores
envolvidos, a busca de soluções criativas para os problemas
encontrados, o desenvolvimento do trabalho em equipe matricial, a melhoria permanente da qualidade do cuidado à saúde
e a humanização do atendimento17.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é possível pensar a mudança na formação dos profissionais de saúde sem a discussão sobre a articulação ensino-serviço, considerando-a um espaço privilegiado para uma
reflexão sobre a realidade da produção de cuidados e a necessidade de transformação do modelo assistencial vigente em
um modelo que considere como objetivo central as necessidades dos usuários.
Ainda são muitas as críticas bidirecionais entre serviço e
ensino. Neste sentido, é preciso ampliar os espaços de diálogo

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e sensibilização de todos os atores envolvidos neste contexto
para sua co-responsabilização no que diz respeito à formação
de novos profissionais e à prestação de cuidados em saúde.
Para que seja possível construir um novo modo de organizar e praticar a atenção à saúde, é preciso um novo perfil
de trabalho e de trabalhadores. A formação e a qualificação
dos profissionais da saúde devem ser orientadas pelas necessidades da população. Logo, não cabe mais uma relação distanciada e cerimoniosa entre o ensino e o serviço. Muito pelo
contrário, é necessária uma articulação estreita, tendo em vista
a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho.
Esta transformação pressupõe trabalho em equipe, acolhimento dos usuários, produção de vínculo entre eles e as
equipes, responsabilização com a saúde individual e coletiva,
atendimento das necessidades dos usuários, assim como resolubilidade dos problemas de saúde detectados.
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CONFLITOS DE INTERESSE
Declarou não haver
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Verônica Santos Albuquerque
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362 32 (3) : 356 – 362 ; 2008