Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Arquivo
Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares.pdf
Documento PDF (300.4KB)
                    FORMAÇÃO DE PROFESSORES
E PRECEPTORES NO CONTEXTO
D E I N OVA Ç Õ E S C U R R I C U L A R E S
TRAINING OF TEACHERS AND PRECEPTORS
IN THE CONTEXT OF CURRICULAR
I N N O VAT I O N S

Victoria Maria Brant Ribeiro1,
Elizabeth Menezes Teixeira Leher2,
Professora associada
da UFRJ

1

Maria Paula Cerqueira Gomes3, Hulda Cristina Rocha4,
Denise da Silva Mattos5, Mirian Vieira Maia6,

Professora associada
da UFRJ

2

Valéria Ferreira Romano7

Professora associada
do IPUB-UFRJ

3

Médica tutora do
curso Docência na
Saúde da UFRGS

4

Médica tutora do
curso de Formação
Pedagógica de
Preceptores da UFRJ

5

Médica tutora do
curso de Formação
Pedagógica de
Preceptores da UFRJ

6

Professora adjunta da
Faculdade de Medicina
da UFRJ

7

RESUMO
Relato da experiência sobre o desenvolvimento de curso
semipresencial de aperfeiçoamento oferecido pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, denominado:
“Formação pedagógica dos formadores dos profissionais da
saúde: a preceptoria dos internatos em questão”. Norteado
pela qualificação da formação médica e pela implementação
de método ativo para formação pedagógica de formadores dos
profissionais de saúde para o SUS, o curso usa a Aprendizagem
Baseada em Problema (ABP) como método, além do apoio de
uma ferramenta de autoria para a parte virtual. A utilização de
método ativo foi avaliada como o diferencial nesse processo de
formação pedagógica, pois, segundo os participantes do curso,
a busca ativa, os trabalhos em grupo e as discussões nos fóruns

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

57

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

virtuais foram potencialmente motivadores para aquisição
de competências necessárias para estudar e responder as
questões orientadoras de aprendizagem dos quatro módulos
com os quais se desenvolve o curso e para promover mudanças
nas suas práticas.
Palavras-chave: Educação. Aprendizagem baseada em
problema. Saúde.

PONTO DE PARTIDA
Este texto é o relato sobre a experiência de desenvolvimento
de um curso semipresencial de aperfeiçoamento ofertado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), denominado:
“Formação pedagógica dos formadores dos profissionais da
saúde: a preceptoria dos internatos em questão”.
Totalizando oito versões em 2014, realizou-se a formação
pedagógica de 280 preceptores, tendo, dentre eles, um
considerável número de professores e profissionais da Rede
de Atenção à Saúde do Rio de Janeiro que nos procurou com
interesse em repensar a própria prática docente.
A experiência com o curso iniciou-se em 2007, após aprovação
de projeto no Edital 23/2006-CNPq: Formação pedagógica
dos formadores dos profissionais da saúde: a preceptoria dos
internatos em questão. Tínhamos como objetivos: a melhoria
da formação médica por meio da capacitação pedagógica dos
preceptores do internato; a implementação de método ativo

58

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

para formação pedagógica de formadores dos profissionais de
saúde para o SUS. Método esse que nos levou à constituição de
uma equipe de tutoras com o seguinte perfil: seis profissionais
da saúde e uma da educação estrito senso, das quais duas
eram médicas anestesiologistas, mestras em educação e
saúde; duas médicas ligadas à Saúde da Família, ambas
professoras de Atenção Básica, uma, com mestrado, e outra,
com doutorado em Saúde Coletiva; duas psicólogas, uma,
doutora em Educação, e outra, em Saúde Pública, responsável
pela coordenação de uma residência multiprofissional; e uma
doutora em Educação que traz a experiência do movimento de
formação pedagógica docente, no âmbito da reforma curricular
da Faculdade de Medicina da UFRJ, especialmente no que diz
respeito à revisão dos métodos de ensino e de avaliação.
É, então, essa experiência que nos autoriza a falar sobre
formação de professores.
Tomamos de empréstimo o conceito de experiência trabalhado
por Larrosa (2002). Segundo ele, é a experiência que provoca
mudanças nas relações do homem com o meio. Propõe, então,
um exercício de elaboração contínua, no qual a realidade é
descrita, apreendida, interpretada e reinventada com base na
experiência e nos acontecimentos cotidianos. Esse autor nos
ajuda a pensar a importância das vivências no processo de
ensino-aprendizagem: “A experiência é o que nos passa, o que
nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002).
Larrosa (2002) complementa o argumento ao afirmar que o
sujeito da experiência é aquele que está exposto, mostra-se
vulnerável ao acontecimento, corre risco em uma dimensão

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

59

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

que relaciona travessia e perigo de modo simultâneo e que,
ao passar por nós, acomete-nos, forma-nos e transforma-nos,
reconhecendo uma espécie de mediação entre conhecimento
e vida nas experiências vividas.
O conceito de experiência exige que sejamos tocados,
atravessados pelos eventos da vida, do mundo do trabalho.
“Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada
vez mais rara” (LARROSA, 2002).
Nesse sentido é que a metodologia aqui proposta alinha-se ao
modelo de aprendizagem sustentado pelo conhecimento que
se constrói com base na experiência, em um saber que emerge
do fazer.
Quanto às inovações curriculares, o que fazemos com os
preceptores é usar a problematização como metodologia e a
Aprendizagem Baseada em Problema (ABP)1 como método,
com o apoio de uma plataforma virtual, a Constructore,
desenvolvida pelo Laboratório de Tecnologias Cognitivas (LTC)
A Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) surge entre o final
da década de 1960 e o início da década de 1970, nas Faculdades
de Medicina da Universidade de McMaster, no Canadá, depois, na
Universidade de Maastricht, na Holanda. A ABP entende o processo
de aprendizagem como dinâmico e centrado na participação ativa
dos estudantes. Nesse método, a aposta é que a participação ativa
da aprendizagem é mais produtiva que a transferência passiva
de informações do professor ao estudante. Os estudantes, assim,
são chamados a problematizar, pesquisar, refletir, dar significado
e entender os conteúdos trabalhados, uma vez que desenvolvem
abordagens para a solução de problemas específicos em um contexto
relevante à futura carreira profissional (CYRINO; TORALLES-PEREIRA,
2004).

1

60

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Essa ferramenta
oferece a professores e alunos da UFRJ a oportunidade
de desenvolverem materiais e atividades educativos
semipresenciais e a distância para as ações de pesquisa, ensino
e extensão. É uma ferramenta bastante amigável, com a qual
desenvolvemos a parte virtual do curso.
O uso de método ativo tem se mostrado extremamente
eficiente e, com algumas resistências iniciais, tem sido avaliado
como o diferencial nesse processo de formação pedagógica,
pois, segundo avaliação dos participantes do curso, a busca
ativa, os trabalhos em grupo, as discussões nos fóruns virtuais
foram situações que os tiraram da zona de conforto, tornandoos mais sensíveis e motivados para a busca de referências
necessárias para estudar e responder as questões orientadoras
de aprendizagem, correspondentes aos quatro módulos com
os quais se desenvolve o curso, uma aquisição que, segundo
eles, é levada não só para a docência mas também para a vida
(RIBEIRO, 2011).

CONTEXTO
Essa experiência nasce no contexto da 3ª Conferência Nacional
de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (MS/Conselho
Nacional de Saúde), realizada em março de 2006, na qual a
Política de Educação em Saúde figura como componente
estratégico da gestão do SUS, uma vez que propõe a
formação e o desenvolvimento dos profissionais da saúde,
preparando-os para o atendimento ético, humanizado e de
qualidade, competências previstas nas Diretrizes Curriculares

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

61

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Nacionais para os cursos da área da saúde (BRASIL, 2001;
BRASIL, 2014). Questões como a integralidade das ações de
saúde, territorialidade, multidisciplinaridade, humanização
do cuidado, saber popular, dentre outras, figuram ao lado
de propostas de integração ensino/serviço, itinerário da
educação profissional em saúde e qualificação para gestão,
o que evidencia o caráter abrangente e complexo de toda e
qualquer ação que se venha a planejar nessa área. A proposta
de que os processos de mudança curricular realizados pelas
escolas de graduação em saúde articulem e estabeleçam
“ações cooperadas entre o SUS, as instituições de ensino (...)
e os movimentos sociais (...)” (BRASIL, 2006) parece tanto
ter possibilitado a execução de pesquisa e desenvolvimento
em torno de temas relevantes para a sociedade, visando
à mudança, quanto favorecido estágios ou programas de
extensão que propiciam ao aluno participar (com supervisão
docente e preceptoria médica e de outras áreas da saúde) das
diferentes ações em diferentes níveis de atenção à saúde e
contribuir para a otimização do atendimento à comunidade.
Tudo isso ao lado das grandes mudanças que vêm acontecendo
na sociedade, tais como o alargamento do tempo médio
de vida, as mudanças econômicas, sociais e demográficas,
a progressiva urbanização das populações e a crescente
consciência das pessoas com relação aos direitos que possuem
no campo da saúde, fatores que configuram exigências para
se alterar a formação dos profissionais de saúde, tornando-os
habilitados a trabalhar com esses problemas.
Com base nesse contexto, pensamos em ampliar o que
vínhamos fazendo, desde o ano 2000, na disciplina
Planejamento Curricular e de Ensino na Área da Saúde, do

62

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, obrigatória nos
programas de pós-graduação em Medicina e em Odontologia
da UFRJ e que destacava a importância da aquisição e da
construção de conhecimentos na área da educação como
instrumentos de apoio a mudanças curriculares e na prática
docente.
Avaliada a experiência, na qual era usado o método de ABP,
decidimos ampliar essa nova forma de relação mestrandoprofessor no processo de ensino-aprendizagem para as
atividades de preceptoria dos internos da Faculdade de
Medicina da UFRJ, majoritariamente exercidas por médicos
sem qualquer formação pedagógica. E essa é a experiência que
consideramos uma inovação curricular, em especial, levandose em conta o peso institucional, eminentemente tradicional,
do ambiente no qual essa inovação seria implantada.
Este é o cenário que preparamos para desenvolver este texto: de
um lado, a formação pedagógica de preceptores e professores;
de outro, o método que usamos no processo de formação: ABP.
Diante disso, o grupo de tutoras decidiu discutir, em um grupo
focal, os desafios e as possibilidades da experiência, ou seja,
as situações de desconforto, de desequilíbrio, de dúvidas e de
suspeitas enfrentadas nos oito cursos já transcorridos, as quais
consideramos como desafios; e os anúncios, as esperanças
que identificamos como possibilidades de conquistas, de
superação dos desafios, dentre os quais, destacamos os
seguintes: o exercício do protagonismo, o compartilhamento,
a governabilidade no processo de trabalho, a conquista da
autonomia, a descoberta do potencial para inovar/ousar, a

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

63

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

função de autoria, os encontros e desencontros nas relações
pedagógicas.

DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Um primeiro desafio é chegar ao professor, ao médico, ao
preceptor, enfim, ao formador do profissional da saúde e
incentivá-los; ouvi-los e descobrir neles seus desejos, suas
dificuldades – parece simples, mas é um enorme desafio.
Outro desafio é pensar como podemos incluir o trabalho
com inovações tecnológicas e pedagógicas, com o pouco que
inovamos, na direção de chamar todos os protagonistas para
o processo; em geral, chega-se dizendo como as coisas têm
que ser feitas e pouco se escuta sobre como é a prática desse
professor, e é essa a lógica que tentamos subverter.
Desafio também é incluir, obrigatoriamente, estratégias de
compartilhamento na construção do processo de trabalho;
em saúde, o espaço de educação permanente, por exemplo,
é fundamental para isso acontecer; sentar junto para
planejar o processo de trabalho, ter avaliações periódicas
e, nessas ocasiões, pautar os processos de trabalho,
abrindo oportunidade para o trabalho com as dificuldades,
especialmente pelo fato de os grupos tutoriais constituírem-se
de profissionais de diferentes áreas da saúde. Essa forma de se
fazer a convocação, para que todos sintam-se protagonistas,
responsabilizem-se pelo seu processo de trabalho, adquirindo
governabilidade sobre ele, é que faz a diferença.

64

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Se pensarmos bem, qual o convite que fazemos, tanto para
preceptores quanto para professores em um processo de
formação pedagógica? Para trabalhar mais, para refletir mais,
para realizar mais projetos pedagógicos, e isso dá trabalho.
Mas esse trabalho, se for conjunto, revela uma potência
imensurável e um interessante grau de criatividade, de
intervenção, de interseção, de interpelação. Todos ganham,
ampliam suas caixas de ferramentas2. Quem estava capturado,
desanimado, achando que nada havia para fazer, com esse tipo
de formação, vai produzir governabilidade e, aí, terá prazer,
alegria.
Mas tudo isso vai depender de como se chega a essa conversa.
Se eles (seja docente seja preceptor) estão no mundo do
trabalho, se estão minimamente ali, se focamos isso, o trabalho
deles, e não a formação deles, vamos identificar uma série de
impasses, de problemas que cotidianamente os fazem sentirse desamparados. Porque esse caminho é solitário, particular,
mas não pode ser desamparado. Então, se trazemos isso para
discussão, eles ficam surpresos e se mostram disponíveis
para o diálogo, para a troca de experiências. É preciso fazer
desses momentos o tempo, por excelência, do diálogo, da
livre expressão e da aposta de um consequente e contínuo
comprometimento, com reflexos na conquista da autonomia.

Seriam três tipos de caixas de ferramentas: uma, vinculada à
propedêutica e aos procedimentos (diagnósticos e terapêuticos),
outra, aos saberes e outra, às relações trabalhador-usuário, cada
uma delas expressando processos produtivos singulares implicados
em certos tipos de produtos (Novo olhar sobre as tecnologias de
saúde: uma necessidade contemporânea. Emerson Elias Merhy e
Laura Camargo MacruzFeuerwerker, disponível em www.uff.br/
saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-25.pdf‎).

2

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

65

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

O curso cria esse espaço e esse tempo para problematizar
os modos de ser e atuar na profissão. Ao longo do processo,
surgem discussões sobre o “fazer” dos preceptores;
inquietações são verbalizadas, debatidas, questionadas e
revistas, proporcionando um movimento que possibilita a
percepção da possibilidade de os alunos efetuarem mudanças
que têm princípio no microuniverso de seus cenários de prática
e podem culminar em propostas de intervenção, algumas delas
até já implantadas (ROCHA, 2012).
Ainda, outro desafio é formar para o SUS, tema que sempre
pareceu um tabu em discussões com os preceptores e
professores. O SUS passa a ser uma discussão possível nesse
processo de formação; considera-se o Sistema Único de Saúde
uma produção de cada local, de cada grupo, uma área de
tensionamento permanente, de instabilidade. É interessante
perceber como à medida que o curso vai progredindo,
esse tema ganha força e passa a ser objeto de estudo e se
incorpora, aos poucos, ao discurso corrente dos preceptores
como um ponto inflexível a ser obrigatoriamente incluído
na prática da preceptoria. Fica claro que o aparecimento
de novos problemas de saúde, relacionados às alterações
ambientais e ao aparecimento de novas enfermidades, exige
respostas diversificadas e sustentadas por um conhecimento
sólido das ciências básicas, dos sistemas de saúde e de suas
potencialidades.
É também interessante observar como, nesse processo de
formação pedagógica da preceptoria, é comum encontrar
essa questão de a pessoa seguir em frente diante da própria
potência. E, aí, ela começa a discutir coisas que nunca discutiu

66

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

e começa a se ver no mundo do trabalho de outra maneira,
naquilo que potencializa o que ela muitas vezes faz de
modo próprio e que ninguém nunca reconheceu, ações que,
inclusive, tentam rotular como algo que não tem valor. Então,
a experiência desse curso mostra muito essa possibilidade, de
ganho indireto. É claro que, do ponto de vista do ganho direto,
nesse processo de aprendizado, a pessoa instrumentalizase para as questões da prática no ensino, exercita, analisa e
critica várias técnicas de ensino. Segundo Nóvoa (1992, p. 25),
“a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de
conhecimentos ou de técnicas), mas, sim, através de uma
reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção
permanente de uma identidade pessoal”. Mas o que fica
ressaltado é esse confronto com a questão da potência
(e a consciência de que ela existe!), algo que vai além da
instrumentalização didática.
Temos presenciado, entre os preceptores, uma conquista
processual da função de autoria, à medida que eles vão se
responsabilizando pela busca ativa da literatura para estudo
dos problemas. Durante a formação, o que se espera é que
eles sejam autores reais da própria produção. E, para isso,
há uma série de dispositivos pedagógicos3 que podem ser
acionados, tais como: problematizar os conceitos, instaurar
a dúvida nas afirmações, tanto de formadores quanto dos
alunos (professores e preceptores), e outras técnicas didáticas.

3
Entendemos como dispositivos pedagógicos um conjunto de
materiais, ações e estratégias que podem ser eleitas para potencializar
o processo de aprendizagem. Abrangem recursos como filmes,
vinhetas, situações problemas, dramatização, a problematização de
conceitos, portfólios, entre outros.

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

67

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Finaliza-se com a proposta de um projeto de intervenção com
vistas a aplicar o uso de métodos ativos de aprendizagem nos
diferentes ambientes de trabalho onde os cursistas encontramse inseridos. A apresentação do projeto como trabalho de
conclusão do curso e o que temos recolhido ao longo das
edições do curso com relação aos efeitos dessas implantações
autoriza-nos a afirmar que essa análise preliminar revela
o quanto esses profissionais se apropriam de conceitos e
tendências pedagógicas – e literatura teórica em geral – no
campo da educação. A ideia é inaugurar uma prática de
produção teórica dos profissionais diretamente responsáveis
pela formação prática dos estudantes de Medicina e de
saúde, de modo geral, pelo cuidado e pelos procedimentos
terapêuticos de pacientes dos hospitais universitários e de
ensino das redes estadual e municipal.
Outro desafio é entender que, nas relações pedagógicas,
haverá, sim, um desencontro, às vezes, insuportável, entre nós,
formadores, e nosso público-alvo, seja de preceptores seja de
professores. Esse desencontro não é um só, naquele momento,
mas um processo para a vida. Afinal, cada um dos autores desse
processo formativo chega trazendo seus saberes (produzidos
com base na vivência e também a partir de distintas fontes,
ainda mais num mundo em que a circulação de informações
quebra inúmeras barreiras), desejos, entendimento do que é
ensino, aprendizagem, dentre outras expectativas. É preciso
suportar para não ficarmos capturados nisso; é preciso
reconhecer esses desencontros e ter clareza sobre seus custos
(conflitos, crises, atrasos) e benefícios (superações, rupturas,
avanços). E, aí, quem está como facilitador desse processo
precisa ter espaços de reflexão, de aprender que é assim

68

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

mesmo, de ter escuta, porque, se não, não se consegue. É
muito bonito dizer: trabalho com ruído, trabalho com tensão,
mas trabalhar com esses desencontros não é fácil; é preciso
ter pares para discutir e ter paciência. É um pouco o trabalho
de formiga: usar ferramentas pequeninas, que não podem
estar dissociadas de um projeto maior, e conversar o tempo
inteiro. Na verdade, no trabalho que fazemos, e comprovamos
no desenvolvimento dos projetos de intervenção, fica claro
que vários trabalhos em nível micro, com um pouco de
governabilidade, não fazem mudança institucional, mas fazem
e produzem mudança na prática. Na formação, também.
E mudanças significativas, especialmente nas relações de
comunicação, de ensino e de aprendizagem dos preceptores
com os internos e com os residentes, por exemplo.
Uma avaliação da prática dos preceptores egressos desses
cursos deixa claro que eles assumiram um novo conceito
de educação, rompendo padrões tradicionais de ensino,
passando a atuar como protagonistas de mudanças que
viabilizam um ensino médico – ou em outras áreas da saúde
– inovador; revelaram apreensão de técnicas pedagógicas e
capacidade de refletir criticamente sobre a própria prática de
preceptoria, realizando transformações em seus ambientes
laborais, validando esse curso como instrumento de educação
permanente em saúde, viabilizando a formação pedagógica
daqueles que são responsáveis pela educação em saúde na
UFRJ, afirmando a importância de iniciativas como essa para
outras instituições de ensino em saúde (ROCHA, 2012).
Mas é preciso lembrar que também temos uma grande área
que fica totalmente inexplorada nesse processo de trabalho.

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

69

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Isso se dá no ensino de graduação também. Temos, por
exemplo, os professores tradicionalmente formados e que
acham que tudo que ensinam é relevante e, de outro lado, os
alunos com seus currículos paralelos que são absolutamente
desligados daquilo que é ensinado. Os dois lados não
conversam entre si. Em alguns momentos, até conversam, mas
só por meio de alguns professores que servem de ponte. Mas
não é ponte que tem que ser feita. Os alunos fazem Ligas4, por
exemplo, que são uma estratégia até meio messiânica, meio
salvadora, a respeito das necessidades e dificuldades que
eles encontram no percurso acadêmico. Os alunos entram
para a Liga, relacionada a um tema e ficam completamente
absorvidos, distanciados, porque o curso não deu e não dá
isso a eles. Onde é que vamos fazer essa rede, aqui no meio,
para isso funcionar? Como combater a racionalidade médica,
tão arraigada, de grande parte dos docentes? É fazendo “furo
no muro”, não recuando, mostrando com o trabalho. Não é
confortável. É preciso aprender a lidar com as ferramentas
que fazem o furo. A caixa de ferramentas de Emerson Merhy
(2000) ajuda a pensar, por exemplo, nos processos de inovação
curricular. Qual caixa de ferramentas eu preciso usar para lidar
As Ligas Acadêmicas são organizações formadas por um grupo de
alunos com interesse comum, tendo um ou mais professores como
coordenadores. Visam aprofundar os estudos em determinado tema
da formação médica e em saúde. O estímulo à produção científica e a
realização de cursos de extensão também são atividades-fim de toda
Liga Acadêmica e devem ser sempre estimuladas e promovidas pelos
seus integrantes. Cabe às Ligas gerar outros cenários em que se exerça
o ensino e a prática, sempre com atenção à demanda da população,
ponto que deve nortear tanto a formação das Ligas quanto o seu
foco de trabalho (Faculdade de Ciência Médicas da Facisa; Faculdade
de Ciências Sociais e Aplicadas, Paraíba; e Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Juiz de Fora).

4

70

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

com os professores nesse processo formativo, para lidar com
a linha de educação e saúde? Sem dúvida, precisamos usar as
três tecnologias (leves, leves-duras e duras).
Em síntese, apontamos os desafios que são mais visíveis
em nossa prática e que, ao serem enfrentados, vêm nos
encaminhando para o fortalecimento do campo da educação
e saúde na UFRJ.
São, então, os desafios:
•

Atingir a pessoa e fazer com que ela identifique
suas necessidades, suas dificuldades.

•

Inserir os atuais professores nessa formação
voltada para os princípios do SUS e para as
novas tecnologias.

•

A governabilidade – os preceptores, depois
que passam pelo curso, descobrem que
têm governabilidade, identificam seu papel
no processo de trabalho e seu poder de
governabilidade.

•

O “furo do muro” – que esses processos
formativos possam se dar com base nos
processos de trabalho dos docentes, do
público-alvo; não pode ser com uma agenda
prefixada; os conteúdos, os módulos teóricos
têm que ter como base o mundo do trabalho
e a integração da universidade com os serviços
de saúde.

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

71

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

•

Que os professores e preceptores entendam
que não são uma ilha, que precisam estar em
conexão com outras áreas de estudo. É preciso
que eles comecem a se abrir para conexões
que vão auxiliá-los na transformação do
próprio trabalho.

Diante desses desafios, podemos pensar em possibilidades
para superá-los:
As possibilidades são todas, pois não existe mundo em que
tudo já esteja dominado. Se de fato quisermos colocar tudo
isso em exercício, há muitas possibilidades de mudança, e
em vários níveis. Talvez seja difícil acreditar, hoje em dia,
em grandes revoluções, mas acreditamos nessas mudanças
menores que, às vezes, têm mais potência transformativa
que as grandes. Por exemplo: lideranças que se disponham
a correr riscos e dar o exemplo, que exercitem a capacidade
de argumentação, que acreditem no potencial do grupo para
levar a cabo as mudanças e que não tenham medo de ousar,
de se aventurar.
Mas é preciso ficar atento, pois também há uma potência
que está nos alunos (todos); eles que nos transformam,
indicam-nos caminhos. A força deles para tirar professores e
preceptores da zona de conforto é enorme.
E, finalmente, o encontro que precisa ser compartilhado
por todos. Para tanto, é nossa responsabilidade criar
permanentemente oportunidades para que esse encontro
aconteça.

72

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

REFERÊNCIAS
BOTTI, S. H. O.; REGO, S. T. A. Docente-clínico: o complexo
papel do preceptor na residência medica. PHYSIS Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p.
65-85, 2011.
BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos RH Saúde.
Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
– v. 3, n. 1, Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
BRASIL. CONSELHO Nacional de Educação. Câmara
De Educação Superior. Resolução CNE/CES Nº 4, de 7
de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Medicina.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de
Educação Superior. Resolução Nº 03, de 20 de junho de
2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de Graduação em Medicina e dá outras providências.
CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. O quadrilátero da
formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção
e controle social. PHYSIS – Rev. Saúde Coletiva, v. 14, n. 1,
p. 41-65, 2004.
CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio
ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saúde,
Educ., v. 9, n. 16, p. 161-168, 2005.
CYRINO, E. G.; TORALLES-PEREIRA, M. L. Trabalhando com
estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área
da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada
em problema. Rio de Janeiro, Cad. Saúde Pública, v. 20, n.
3, p. 780-788, 2004.

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

73

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

GARCIA, M. A. A. Saber, agir e educar: o ensinoaprendizagem em serviços de Saúde. Interface _ Comunic,
Saúde, Educ, v. 5, n. 8, p. 89-100, 2001.
LARROSA, J. B. Notas sobre a experiência e o saber de
experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002.
MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises
tecnológicas. Contribuições para compreender as
reestruturações produtivas do setor Saúde. Interface _
Comunic, Saúde, Educ. (Botucatu), v. 4, n. 6, 2000.
NÓVOA, A. Formação de professores e profissão
docente. In: A. Nóvoa (coord.) Os professores e a sua
formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote/Instituto de
Inovação Educacional, 1992. p. 13‑33.
RIBEIRO, V. M. B. (organizadora). Formação pedagógica
de preceptores do ensino em saúde. Juiz de Fora: Ed. UFJF;
2011.
ROCHA, H. C. Avaliação da prática de preceptoria
após formação pedagógica. 2012. 106 f. Dissertação
(Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde, UFRJ, 2012.

ABSTRACT
Experience report on the development of a blended
learning model course offered by the Federal University of
Rio de Janeiro: “Health Professionals’ Trainers’ Teaching
Training: a preceptorship of medical internship in question”.
Aiming at a better qualification of medical training and the
implementation of an active pedagogical strategy used with
health professionals’ trainers for SUS, the course uses Problem

74

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Based Learning (PBL) as a method, and the support of a virtual
platform of its own. Participants evaluated the use of this
interactive method as more effective, because the strategies
of active research, group work and discussions in online
forums were particularly motivating for the acquisition of skills
required to study and answer the leading questions during the
learning process provided by the four modules of the course as
well for making changes in their practices.
Keywords: Education. Problem based learning. Health.

Victoria Maria Brant Ribeiro
Professora associada e pesquisadora do Programa de Pesquisa
em Tuberculose e do Programa de Pós-Graduação em Clínica
Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
victoria.brantr@gmail.com

Elizabeth Menezes Teixeira Leher
Psicóloga graduada pela UFRJ (1982), especialista em Educação
e Saúde (1988), mestre em Educação (1995) pela UFRJ e
doutora em Educação (2002) pela Universidade de São Paulo
(USP). Especialista em Ativação de Mudanças na Formação
Superior de Profissionais de Saúde - ENSP/Fiocruz (2013/2014).
Aposentada pela UFRJ, desenvolveu atividades no Núcleo de
Tecnologia Educacional para a Saúde (1983-2014), integrando
a equipe responsável pelo Curso de Aperfeiçoamento Formação
Pedagógica de Preceptores do Ensino em Saúde (2007-2014).

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

75

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Pesquisadora do grupo de pesquisa Educação e ComunicaçãoPPGE da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), desde
2003. Pesquisadora especialista visitante em Tecnologias
Educacionais na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/
Fiocruz – Bolsista especialista visitante máster - Fiocruz/CNPq
(março 2015-atual).
eleher@gmail.com
Maria Paula Cerqueira Gomes
Psicóloga, professora associada do Instituto de Psiquiatria
(IPUB) da UFRJ. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto
Moreira Sales (IMS) da UERJ e doutora em Saúde Mental pelo
IPUB-UFRJ. Pesquisadora na linha Micropolítica do Trabalho
e o Cuidado em Saúde (UFRJ). Coordenadora da Residência
Multiprofissional de Saúde Mental Ipub-UFRJ.
paulacerqueiraufrj@gmail.com

Hulda Cristina Rocha
Médica formada pela UERJ (1979-1984), com residência
médica em Anestesiologia pelo Hospital Clementino Fraga
Filho da UFRJ (1985-1987) e mestrado em Educação em Saúde
pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para Saúde, da UFRJ
(2011-2012). Cursou Formação Pedagógica de Preceptores
para Área da Saúde da UFRJ (2010) e Formação de Tutores
na especialização do curso de Docência na Saúde na UFRGS/
EaD (2014). Tutora do Curso de Formação Pedagógica para
Preceptores da Área da Saúde da UFRJ (2012) e do Curso
Docência na Saúde UFRGS (2014-2015).
huldacristina@gmail.com

76

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5, n. 2, p. 57-77, out. 2015

Ribeiro VMB et al.

Formação de professores e preceptores no contexto de inovações curriculares

Denise da Silva Mattos
Médica do Departamento de Medicina de Família e Comunidade
da Faculdade de Medicina (FM) da UFRJ. Mestre em Clinica
Médica pela UFRJ; coordenadora adjunta do Programa
Curricular Integrado Atenção Integral à Saúde da FM-UFRJ;
tutora do curso de Formação de Preceptores da UFRJ.
Mirian Vieira Maia
Médica Anestesiologista do Hospital Universitário Clementino
Fraga Filho, da UFRJ, e do Hospital Universitário Pedro Ernesto,
da UERJ. Mestre em Educação em Ciências e Saúde pelo Núcleo
de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes), da UFRJ.
Tutora do curso de Formação Pedagógica de Preceptores da
UFRJ.
Valéria Ferreira Romano
Professora adjunta da Faculdadede Medicina da UFRJ;
médica da família, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto
de Medicina Social da UERJ; coordenadora do Laboratório
de Ensino em Atenção Primária (Leap), da UFRJ; membro
do Colegiado de Coordenação da Residência em Medicina
de Família e Comunidade da UFRJ; docente permanente do
Mestrado em Atenção Primária da UFRJ.
valromano@uol.com.br

Rev. Docência Ens. Sup., v. 5 , n. 2, p. 57-77, out. 2015

77