O SUS e um dos seus dilemas: Mudar a gestão e a lógica do processo de trabalho em saúde
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O SUS E UM DOS SEUS DILEMAS: MUDAR A GESTÃO E A LÓGICA DO
PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE (um ensaio sobre a micropolítica do
trabalho vivo)
Publicado como capítulo do livro Democracia e Saúde, organizado por Sonia F.
Teixeira, publicado pelo CEBES/LEMOS, 1998, São Paulo.
Emerson Elias Merhy Médico Sanitarista e Professor da UNICAMP
Campinas/1996
Para além da crise do atual padrão de relações entre o estado e a
sociedade no Brasil, que em si tem gerado uma enormidade de problemas no
interior dos equipamentos institucionais de saúde, convivemos no dia a dia com
uma gama muito ampla de outros problemas que alteram intensamente a
capacidade dos serviços de saúde em cumprir com o seu papel de instrumentos à
serviço da vida individual e coletiva.
Ao lado da: falta de dinheiro; do uso político clientelista das políticas de
saúde por parte das esferas federais, estaduais e municipais; das disputas entre os
diferentes ministérios sociais por recursos financeiros; da intensa campanha neo
liberal para desmoralizar qualquer ação competente por parte do setor público; da
ausência de uma legislação adequada à importância das políticas sociais no
interior dos governos e da frágil estrutura tributária dos governos municipais, que
convivem com uma grande retração dos gastos federais e estaduais no setor;
convivemos com uma profunda crise de falta de eficácia e efetividade dos serviços
de saúde, públicos e privados.
Inúmeros são os exemplos que mostram a desumanização dos serviços em
relação a clientela; a falta de compromisso dos trabalhadores de saúde com o
sofrimento dos usuários; a baixa capacidade resolutiva das ações de saúde; a
intensa desigualdade no atendimento dos diferentes estratos econômicosociais e
o privilegiamento dos cidadãos, que podem pagar altos preços pelos serviços, no
acesso ao melhor que se tem no setor.
2
Aliase a isto o baixo impacto que as ações de saúde têm tido nos principais
problemas da população e a sua pouca contribuição para a melhoria da qualidade
de vida das pessoas, ocorrendo em muitos casos o contrário, uma piora de alguns
indicadores do padrão de saúde das populações, revelado no aumento da
presença de doenças evitáveis e erradicáveis. O que pode mostrar uma
contribuição pouco efetiva das atuais ações de saúde na promoção e proteção dos
indivíduos e da coletividade, expressando a capacidade de impacto do atual do
modelo tecnoassistencial adotado pelo sistema de saúde, brasileiro.
Este quadro tem estado presente cotidianamente na vida das instituições de
saúde, no Brasil, e tem se expressado não só na total insegurança da clientela no
tipo de atendimento do qual muitas vezes está sendo vítima, mas também na
profunda crise de realização e satisfação, como cidadão e profissional, do conjunto
dos trabalhadores do setor saúde.
Entretanto, é interessante observar que, paradoxalmente, a Constituição de
1988 procura garantir a saúde como um direito do cidadão, como um bem de
relevância pública, mostrando que qualquer interesse de ordem privatizante, na
área da saúde, deveria se pautar pelo respeito a estes princípios constitucionais,
subordinandose ao interesse coletivo da cidadania, expressa no radical vínculo do
conjunto das ações de saúde com a DEFESA DA VIDA, INDIVIDUAL E
COLETIVA.
Assim, tem sido um desafio para o conjunto dos agentes sociais, mas em
particular para os trabalhadores de saúde e os usuários do sistema, a busca de
uma compreensão deste quadro global e o apontamento de possibilidades de
intervenções na realidade que possa superar um sentimento de intensa
impotência, dada à grande negritude do quadro desenhado e à predominância dos
interesses mesquinhos da maioria dos membros das elites econômica e política.
Sabemos que se não alterarmos o modo como os trabalhadores de saúde
se relacionam com o seu principal objeto de trabalho a vida e o sofrimento dos
3
indivíduos e da coletividade, representado como doença não basta corrigirmos
procedimentos organizacionais e financeiros das instituições de saúde.
Temos como desafios efetivos a busca de um outro modo de operar o
trabalho em saúde e de construir a relação do trabalhador com os usuários do
sistema de atenção à saúde, edificando uma relação mais solidária entre os
trabalhadores e os usuários e os próprios trabalhadores do ponto de vista do seu
desempenho técnico, e da construção de um trabalhador coletivo na área da
saúde.
Para isto, devemos procurar construir um outro tipo de vínculo entre os
trabalhadores de saúde e os usuários, no interior do conjunto das instituições de
saúde, não só do ponto de vista da participação conjunta nas lutas por melhores
condições de assistência, mas principalmente na produção do compromisso
cotidiano do trabalhador de saúde diante do cuidado. Os trabalhadores têm que se
responsabilizar por uma boa parte da qualidade da assistência que ofertam, pois
sendo o trabalho em saúde um trabalho vivo em ato dependente, podem colocar
todas as suas sabedorias, como opções tecnológicas de que dispõem para a
produção de procederes eficazes a serviço do usuário e de seu problema. Assim,
temos que primar pela "cidadanização" da assistência à saúde, construindo deste
jeito tanto a dignidade do trabalhador, quanto a do paciente.
Como já dissemos em outro texto1, obviamente não se está sugerindo que
ninguém se torne um "piegas" e que ninguém deixe de reivindicar os seus direitos
como trabalhador, mas sim que, nós os trabalhadores de saúde, não nos
recusemos a dispor de tudo que temos para defender a vida, como possuidores do
que melhor a tecnologia em saúde nos fornece que é o nosso saber, o nosso
conhecimento e o nosso trabalho em ato (o exercício do nosso autogoverno) pois
esta é uma das melhores formas de se somar na direção apontada até aqui e
1
- Merhy, E.E. - Em busca da qualidade dos serviços de saúde, in
Cecílio, L.C.O. - Inventando a Mudança na Saúde, Hucitec, São
Paulo,1994.
4
construir uma mútua "cumplicidade" entre usuários e trabalhadores, na melhoria
real da qualidade de vida.
Parece, a nós trabalhadores de saúde, que é no cotidiano dos nossos
trabalhos e no processo coletivo de gestão dos nossos serviços, afim de resolver
os problemas que identificamos no dia a dia, que iremos caminhar nesta direção,
construindo um outro proceder em saúde que se oriente pela constituição de um
vínculo efetivo entre o usuário e os trabalhadores do setor, na busca de uma
resolutividade que se oriente por ganhos de autonomia dos usuários perante os
seus modos de andar na vida.
Como pressuposto básico neste caminhar consideramos necessário que o
conjunto dos serviços de saúde, pelo menos:
.garantam o acesso dos usuários às ações de saúde, ofertando múltiplas
opções tecnológicas para enfrentar os seus distintos problemas;
.acolham os usuários em todos os momentos de relacionamento com os
mesmos;
.dêem a máxima resolutividade às ações de saúde, procurando impactar os
quadros de morbimortalidade a partir da associação mais ampla possível de todas
as ações de saúde individuais e coletivas, tecnologicamente disponíveis.
Para conseguirmos construir uma competência nesta direção achamos que
o conjunto dos trabalhadores de saúde do setor público tem que se pautar pela luta
em torno de um SUS efetivo, publicamente centrado no usuário e democratizado,
controlado por organismos públicos estatais e não estatais; e, para tanto, é
necessário desvendar os mecanismos pelos quais os processos de gestão da
política e do trabalho em saúde possam se tornar um tema público, tanto para o
trabalhador de saúde, quanto para o usuário.
Para andar nesta direção consideramos necessário debruçarmonos sobre
uma análise mais apurada da micropolítica do processo de trabalho em saúde, no
sentido de se pensar as possibilidades de intervenção nos cotidianos institucionais
5
na busca de um novo modo de operar os modelos de atenção à saúde, como
políticas2.
Este tema tem sido ponto de pauta em vários debates atuais no interior dos
países da América Latina, dada a atual conjuntura de reformas institucionais que
passam. Entretanto, os projetos neoliberais têm tido um certo predomínio no
modo de colocar estas questões, o que nos estimula a inicialmente apontar a
maneira de como temos interpretado este processo, e para o qual tomamos como
ponto de análise um evento vivenciado em 1995, na Argentina, como apontamos
abaixo.
A ALGUMAS IDÉIAS SOBRE O DEBATE EM TORNO DAS REFORMAS
INSTITUCIONAIS E A NECESSIDADE DA MUDANÇA DOS PROCESSOS DE
TRABALHO
Tanto os debates em geral na área da saúde, quanto o conjunto de
intervenções dos vários grupos sociais interessados no setor, têm destacado a
necessidade de mudanças do modo de trabalhar na área, em todos os seus níveis
de organização.
Entretanto, tem sido comum que o maior parte destas falas dobrase
principalmente sobre as dimensões mais macroestruturais destes processos, e
poucos têm sido aquelas que destacam a intimidade destas pretensões com a
aquisição de uma certa capacidade teórica e operacional de ação sobre os
aspectos mais micropolíticos destes processos.
Sem querer negar a importância de qualquer situação mais macro no que
toca a organização das práticas de saúde, neste texto vamos tomar como
privilegiada uma reflexão sobre as questões micropolíticas dos processos de
2
- Apesar de tratarmos a noção de modelo de atenção à saúde como o modo de se produzir saúde, através do conjunto das
ações individuais e coletivas, em um dada territorialidade populacional e de acordo à existência de determinados serviços,
para efeito deste material estaremos centralmente nos referindo a modelos de atenção de serviços e não de sistemas, pois
centralmente nos debruçamos sobre o modo de produzir ações de saúde e é neste âmbito micro o nosso olhar reflexivo irá se
centrar prioritariamente.
6
trabalho em saúde, na tentativa de procurar novas pistas para tratar as intenções
de transformações que permeiam o setor saúde.
É neste sentido que inicialmente destacamos uma percepção por nós
sentida sobre esta relação entre aspirações de mudanças e as dimensões micro e
macropolíticas no setor saúde quando de um debate sobre as atuais modificações
do campo de políticas públicas na América Latina e a organização do setor saúde.
Em setembro de 95, ao participar de uma discussão em torno do tema "As
Políticas de Saúde na América Latina e a Política do Ajuste", na Faculdade de
Ciências Sociais da U.B.A., Buenos Aires, tivemos a oportunidade de sistematizar
parte de uma reflexão sobre as possíveis relações que as políticas adotadas pelos
atuais governos da Argentina e do Brasil, denominadas de Ajuste Econômico,
poderiam ter com o processo atual de réordenamento das práticas gerenciais nas
instituições (públicas) de saúde e o campo e os tipos de disputas ali instaladas, em
termos das possibilidades da (ré)invenção de novos modelos tecnoassistenciais3
das políticas de saúde. E, ainda, pudemos pensar sobre o modo como esta peleja
vem sendo travada pelas distintas forças instituintes em jogo.
Procuraremos, antes de mais nada, alinhavar o que seriam os "sinais" mais
característicos destas políticas de ajuste com implicações no processo de ré
ordenamento das práticas de gestão.
Em primeiro lugar, consideramos como relevante, dentre outras possíveis,
que as atuais políticas de ajuste colocadas em prática se fazem acompanhar:
..por um processo de desmonte de vários mecanismos estatais que
mediam e controlam o conjunto das práticas gerenciais e administrativas das
instituições públicas;
..por uma quebra dos mecanismos de controle mais centralizados e
tradicionais, que existiam no interior dos serviços, com liberação de processos
instituintes baseados em atos voluntários de alguns atores institucionais, muitos
3
. Sob esta denominação estamos procurando entender o modo como nas formulações de políticas de saúde se articulam uma
determinada concepção de necessidades de saúde e o desenho assistencial e tecnológico dos serviços existentes, dentro de
uma determinada dinâmica gerencial. Para maior entendimento ver Merhy, E,E. - "Saúde Pública como Política", Hucitec, São
Paulo, 1992.
7
deles grupos instituídos, como corporações profissionais; ou mesmo baseados em
atos isolados de grupos de interesses que atuam fortemente em benefício próprio,
como os “corruptos” e “oportunistas” de distintos tipos;
..pela presença de um poderoso imaginário instituinte pautado na
importância da lógica do mercado e da do "laissezfaire" (ideologia do "deixar
fazer" como energia liberadora e criativa do indivíduo e dentro do seu próprio livre
arbítrio), para regularem o processo "satisfação de necessidadesprodução de
bens e serviços", com implicações nítidas nas práticas de apropriação particular
(privatização em lato senso) do espaço público. E, que pela sua força instituinte
funciona como um poderoso produtor permanente de “sujeitos institucionais” que
defendem a privatização do espaço público, além de gerar uma perspectiva
deslegitimadora dos direitos sociais e coletivos;
..por um cenário de disputa com outras linhas de forças que
apontam para outros processos contrapostos à esta política do ajuste marcado
por uma nítida desigualdade de poderes, devido a uma grande fragilidade destas
outras forças opositoras como imaginários instituintes;
..por uma situação favorável muito específica nas instituições de
saúde, por encontrar nestas uma articulada e poderosa força instituinte centrada
na linha política do modelo médico hegemônico (neoliberal), que bem antes da
instalação plena deste processo de mudança já vinha atuando, instituída, nos
espaços gestores (macro e micro) onde se definem os processos de trabalho em
saúde 4;
..por uma prática institucional nos serviços de saúde marcada pela
fragmentação do processo de trabalho, pelo descompromisso e alienação do
conjunto dos trabalhadores com a produção de seus produtos e resultados;
atingindo, assim, o principal núcleo no cotidiano institucional que constrói o modo
de operar com as necessidades de saúde, e que é o espaço micropolítico de
gestão do processo de trabalho.
4
. Para uma visão mais elaborada desta questão consultar Campos, G.W.S. - "Reforma da Reforma", Hucitec, São Paulo, 1992.
8
Nesta situação percebermos o duplo movimento que os processos de
gestão envolvem ao nível dos serviços de saúde tornase fundamental, pois os
mesmos revelam que na ação dos conjuntos dos agentes envolvidos, no cotidiano
do “fazer” em saúde, de um lado encontramse práticas gerenciais que tomam o
território de formulação e decisão de políticas como o seu campo e de um outro
práticas que enfrentam o fabricar “bens” do trabalho em saúde; e a gestão nesta
dobra tornase lugar de possíveis intervenções impactantes sobre a política e o
modelo de atenção à saúde.
Assim, partindo destes pontos foi possível refletirmos sobre algumas frentes
de lutas que se podem tomar quando se pretende criar processos concretos de
contraposição à aquelas práticas, no interior de cada serviço, como por exemplo as
lutas:
..por uma imaginário em defesa da vida e da solidariedade, que
permita instituir uma orgânica ligação entre saberes da saúde sobre o combate ao
"sofrimento representado como doença" e "o controle e prevenção dos riscos e das
doenças", e um novo modo de realizar cotidianamente as práticas dos serviços, a
partir de um modelo tecnoassistencial centrado no usuário. Aliás digase de
passagem que esta luta é muito dura, pois seu cenário principal está marcado por
uma íntima relação entre o campo macro e micropolítico, o que exige a existência
de "sujeitos políticos"5 do porte de movimentos, partidos, entre outros, com
características "transinstitucionais";
..por processos micropolíticos que possibilitam "publicizar" o
espaço público da gestão do processo de trabalho na busca de novos sentidos e
formatos;
..pela produção de novos modelos tecnoassistenciais que possam
se contrapor em termos de eficácia e resolutividade ao modelo altamente
5
.
Sujeitos
políticos
são
tratados
como
aqueles
que
geram,
com
suas
formulações
e
práticas,
quadros
discursivos
referenciais de disputas para os sentidos das ações sociais e o conjunto dos agentes sociais "em cena". Veja mais detalhe
em Merhy, E.E. - Saúde Pública como Política, op.cit.
9
custoso e pouco efetivo do projeto médico hegemônico (neoliberal) dos serviços
públicos e privados de saúde. E,
..pela tomada estratégica do processo de trabalho em saúde como
analisador institucional privilegiado para orientar uma grande parte desta disputa,
no interior dos distintos equipamentos de saúde.
Deste modo há um permanente desafio para todos aqueles que tomam
como tarefa organizar novos modos de se gerir os serviços de saúde e de se
produzir ações que tenham impacto na criação, manutenção, ou recuperação da
saúde; e que é o de dar conta da especificidade do campo de produção no qual
atua.
A não percepção desta especificidade, ou mesmo a não possibilidade de
compreendêla com clareza, tem levado muitos dos que buscam a
reorganização do modo de se trabalhar em saúde a se inspirarem nos
conhecimentos
e
técnicas
gerados
no
interior
de
várias
correntes
organizacionais (veja o que se faz hoje com a proposta da Qualidade Total) de
um modo acrítico, e com uma prática meramente copiadora de receitas sobre o
como fazer, sem a devida “reconstrução” destes conhecimentos e técnicas para
o singular campo da saúde.
Sem ter em mente o modo muito próprio de como se desenvolve o
processo de trabalho em saúde e a sua gestão, o ato de buscar receitas em
experimentos de outras naturezas tende a ser profundamente frustrante do
ponto de vista da capacidade que as ações de saúde têm de gerar melhorias
efetivas para a vida das pessoas.
Neste sentido, procuraremos mostrar, a partir de um determinado ângulo
de análise sobre o trabalho em saúde, a especificidade das “ferramentas” que
podem contribuir com os processos de “análise das instituições de saúde” na
direção da elaboração de novas práticas organizacionais e novos modos de
trabalhar.
10
Ultimamente temos nos ocupado, cada vez mais, de uma reflexão sobre as
questões referentes à dinâmica micropolítica do trabalho em saúde, tanto no que
se refere à sua dimensão mais articulada às práticas produtivas de bens e
serviços, quanto na sua relação com os complexos processos de reformas
institucionais. Neste sentido, temos visto que a micropolítica do processo de
trabalho, no cotidiano institucional do "fazer saúde", coloca em foco os distintos
modos instituintes de como vem se disputando, nos processos de gestão
institucional do trabalho, pelas distintas forças sociais envolvidas no mesmo, a
configuração de singulares modelos de atenção à saúde. Assim, a partir de um
quadro teórico centrado na busca de sua compreensão podese permitir a
conformação de modos de intervenção institucional que tenham operacionalmente
mais efetividade no sentido da mudança da direcionalidade das práticas de saúde.
Nesta linha, pretendemos explorar e abrir algumas questões sobre o que se
considera uma das fragilidades do movimento em torno da reforma sanitária no
Brasil, e que se expressa, por uma falta de consenso no interior das distintas
forças sociais que o protagonizam, quanto ao "desenho" efetivo de como se deve
“agir em saúde”, no dia a dia da produção das ações, dentro dos referenciais da
construção da cidadania. Além disso, pretendemos também alertar aqueles que
não têm percebido o quanto esta temática atravessa os processos macropolíticos
básicos para a reforma das relações estado, sociedade e políticas.
A construção da figura institucional do gestor único com capacidade de
intervir na construção de novos modelos de atenção passa diretamente pela
possibilidade deste componente do sistema de impactar os processos
micropolíticos em saúde, que constroem os bens e os serviços, e mesmo as
próprias organizações, como relações de poderes e projetos.
Em 1994, tentando analisar e compreender a experiência vivida junto à
rede de serviços públicos de saúde do Município de Ipatinga, em Minas Gerais
na qual pretendíamos alterar a lógica da relação dos serviços com os usuários
11
intervindo na porta do sistema produzimos um material analítico6 que, apesar
de já ter em esboço algumas das interrogações que nos levaram à construção
deste texto, ainda mostrava uma baixa elaboração da complexa dinâmica que o
processo micropolítico em saúde configura; e, com isto, não permitia uma
compreensão suficiente sobre o que vivenciamos. Pois, não tínhamos então
uma visão mais clara da dinâmica do trabalho vivo em ato, no interior do
processo de trabalho em saúde.
Entretanto, já éramos sensíveis à necessidade de se buscar uma
compreensão sobre o processo experimentado, aprimorando algumas questões
já, ali, antecipadas, sobre a importância do “autogoverno” dos trabalhadores de
saúde no interior do processo de trabalho e o lugar estratégico ocupado pela
dinâmica do trabalho vivo em ato na conformação dos processos institucionais.
Em um outro material, mais teórico7, tomamos como centro de nossa
reflexão exatamente esta temática apontada acima. Neste material procuramos
demonstrar alguns aspectos básicos do trabalho vivo em ato, ao fabricar as
ações de saúde individuais e/ou coletivas, no que se refere ao seu
desdobramento tecnológico no espaço da gestão, tanto na sua dobra ao nível do
processo produtivo, quanto na das relações institucionais, tentando com isso
entender e mostrar a importância deste elemento na análise e compreensão das
várias propostas, que vêm sendo geradas no interior dos distintos experimentos
do SUS, e ainda quanto às suas capacidades de gerarem dispositivos
(analisadores) modificadores dos processos de trabalho em saúde.
Acreditamos que uma boa parte destas distintas experiências, apesar de
ricas do ponto de vista macropolítico, têm falhado no sentido de conseguir
pensar a elaboração de “tecnologias” para o trabalho vivo em ato que enfrentem
as situações efetivas e necessárias de mudanças. E, assim, não têm dado conta
da vitalidade deste trabalho no seu fazer, inclusive como chave estratégica para
6
. Merhy, E.E. - Em busca da qualidade dos serviços de saúde, op. cit..
- Merhy, E.E. - “Agir em Saúde: micropolítica do trabalho vivo”, impresso como parte do
relatório da pesquisa “Em busca do gestor único”, DMPS/FCM/UNICAMP, 1996. (140 páginas)
7
12
a “publicização” dos modos de “fazer a política e de fabricar as ações nos
espaços de autogoverno existentes no interior das equipes de saúde, e
expressos nas relações institucionais com os usuários”8.
Por isso, inclusive tomamos como centro de nossa reflexão o
posicionamento estratégico da relação trabalhadorusuário como elemento
analisador dos processos institucionais em saúde e como o lugar de criação de
possíveis dispositivos instituidores de novas lógicas para o processo de trabalho.
Instituidores que possam contribuir para dar maior capacidade operacional
ao conjunto das intervenções que pretendem transformar os modelos de
atenção à saúde, na direção da construção de um SUS comprometido com a
vida e a cidadania, e com a saúde como um patrimônio público, no Brasil.
B EM SAÚDE ANTES DE TUDO SE PRODUZ “BENS RELAÇÕES”,
PRODUTOS DE PROCESSOS INTERCESSORES
Para realizarmos a nossa reflexão vamos partir do conceito de
“intercessores” que estaremos usando com sentidos semelhantes ao de Deleuze
no livro "Conversações"9, que com este termo pretende “figurar” a intersecção
que ele e Guattari constituíram na produção do livro "AntiEdipo"10, procurando
passar a idéia de que esta junção não foi uma simples somatória de um com o
outro, e muito menos que aquele livro foi um produto de 4 mãos, mas sim o
resultado de um processo singular, constituído pelo encontro dos dois em um
único momento.
O uso deste termo é portanto para designar o espaço de relação que se
produz no encontro de "sujeitos", isto é, nas suas intersecções, e que é um
produto que existe para os "dois" em ato, não tendo existência sem este
momento em processo, e no qual os “inter” se colocam como instituintes em
8
- Merhy, E.E. - Agir em Saúde, op.cit.
- Deleuze, G. - Conversações, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992.
10
- Guattari, F. e Deleuze, G. - El Antiedipo - capitalismo
esquizofrenia, Ediciones Corregidor, Buenos Aires, 1974.
9
y
13
busca de um processo de instituição muito próprio, deste sujeito coletivo novo
que se formou.
De posse desta idéia, estamos querendo dizer também que quando um
trabalhador de saúde encontrase com um usuário, no interior de um processo de
trabalho, estabelecese entre eles um espaço intercessor que sempre existirá nos
seus encontros, mas só nos seus encontros, e em ato.
A imagem deste espaço é semelhante à da construção de um espaço
comum de intersecção entre dois conjuntos, ressalvando que este espaço não
existe só nesta situação, e nem só na saúde, pois tanto a relação entre dois
trabalhadores inseridos em um mesmo processo de trabalho é intercessora,
quanto em outros processos de trabalho, que não só o da saúde, também há os
processos intercessores.
Deste modo, além de reconhecer a existência deste processo singular é
fundamental, em uma análise dos processos de trabalho, se tentar descobrir o tipo
de intersecção que se constitui e os distintos motivos que operam no seu interior.
Vejamos isto de um modo esquemático, para que depois possamos tirar
conseqüências analíticas deste entendimento.
1. Os esquemas mais comuns em processos de trabalho como o da
saúde, que realizam atos imediatamente de assistência com o usuário,
apresentamse como o do diagrama abaixo, que chamamos de uma
“intersecção partilhada”.
14
usuário indiv. e/ou coletivo
xxxxxx
xxxxxx xxxx
xxxxx xxxx xxxx
trabalhador de saúde
2. Os que se constituem nos casos mais típicos de processos de trabalho,
como o de um marceneiro que produz uma cadeira, mostram que o usuário é
externo ao processo, pois o momento intercessor se dá com a “madeira”, que é
plenamente contida pelo espaço do trabalhador, como uma “intersecção objetal”.
marceneiro
usuário
xxxxxxx
madeira
xxxxxxx
cadeira
15
Esta distinção da constituição dos processos intercessores mostra como a
dinâmica entre o produtor e o consumidor, e os jogos entre necessidades ocorrem
em espaços bem distintos, e, inclusive, como os possíveis modelos de
configuração desta dinâmica podem ser mais ou menos permeáveis a estas
características.
Por exemplo, podemos dizer que nos modelos tecnoassistenciais
predominantes hoje na saúde, no Brasil, as relações entre usuários de serviços de
saúde e trabalhadores se produzem em espaços intercessores preenchidos pela
“voz” do trabalhador e pela “mudez” do usuário, como se o processo de relação
trabalhadorusuário fosse mais do tipo da “intersecção objetal”.
Entretanto, como efetivamente a relação em saúde é a do tipo de
“interseção partilhada”, com certeza estes tipos de modelos de assistência
realizamse com intensas perdas quanto ao mútuo processo instituinte, contido no
momento da produção e consumo de atos de saúde.
No jogo de necessidades que se coloca para o processo de trabalho é
possível então pensarmos:
1. que no processo de trabalho em saúde há um encontro do agente
produtor,
com
suas
ferramentas
(conhecimentos,
equipamentos,
tecnologias de um modo geral), com o agente consumidor, tornandoo em
parte objeto da ação daquele produtor, mas sem que com isso deixe de ser
também um agente que, em ato, coloca seus conhecimentos e
representações, inclusive expressos como um modo de sentir e elaborar
necessidades de saúde, para o momento do trabalho; e,
2. que no seu interior há uma busca de realização de um
produto/finalidade, expresso de distintos modos por estes agentes, que
podem até mesmo coincidirem.
O que, de uma certa forma, mostra que a análise do processo intercessor
que se efetiva no cotidiano destes encontros pode nos revelar a maneira como
16
estes agentes se colocam enquanto “portadores/elaboradores” de necessidades
no interior deste processo de “intersecção partilhada”.
Os agentes produtores e consumidores são “portadores” de necessidades
macro e micropoliticamente constituídas, bem como são instituidores de
necessidades singulares que atravessam o modelo instituído, no jogo do trabalho
vivo e morto ao qual estão vinculados.
A conformação das necessidades, portanto, dáse em processos sociais e
históricos definidos pelos agentes em ato, como positividades, e não
exclusivamente como carências, determinadas de fora para dentro. Aqui, não
interessa o julgamento de valor acerca de qual necessidade é mais legítima que
outra, este é um posicionamento necessário para a ação mas não pode ser um “a
priori” para a análise, porque o importante é percebermos que todo o processo de
trabalho e de intersecção é atravessado por distintas lógicas que se apresentam
para o processo em ato como necessidades, que disputam como forças instituintes
suas instituições.
Assim, a presença de uma linha de força médicohegemônica que venha
positivamente, através de um determinado (e não de qualquer um) trabalho
médico, atua como instituinte pela ação efetiva de um determinado agente que é
seu constituidor no processo de trabalho, em ato. Do mesmo modo, uma outra
linha de força que venha pelo consumidor, como uma busca de um ato que lhe
permita restituir sua “autonomia” no seu modo de andar a vida, atua também como
instituinte pela ação positiva do usuário no espaço intercessor partilhável.
O espaço intercessor é assim um lugar que revela esta disputa das distintas
forças instituintes, como necessidades, e o modo como socialmente um dado
processo instituído as captura ou é invadido pelas mesmas.
Isto é um tema para ser entendido pela discussão sobre a relação entre
modelos de atenção e a construção dos espaços intercessores. A caixa preta do
jogo de necessidades que ocorre entre o produtor e o consumidor abrese e pode
revelar as possibilidades de intervenção dos distintos modelos de gestão do
17
trabalho em saúde e seus compromissos. Mas, fica registrado que, se o trabalho é
em saúde, o espaço intercessor será sempre partilhado, mesmo que o modelo que
se institua seja o de seu abafamento; porém os instituintes em ato estarão sempre
gerando ruídos no seu interior.
Estes são os casos dos desencontros que os usuários relatam quando
falam da falta de acolhimento e de responsabilização que vivenciam atualmente
nas suas relações trabalho em saúde/consumo.
os espaços intercessores na saúde, as vozes e as escutas
Dentro desta compreensão sobre a constituição do espaço intercessor no
processo de trabalho em saúde é possível introduzirmos uma discussão da
possibilidade de identificarmos situações de ruído no cotidiano dos serviços de
saúde, com a finalidade de se analisar a própria dinâmica daquele processo,
idealizando possíveis intervenções que permitam alterar a direcionalidade das
ações em saúde, no próprio ato do processo de trabalho.
Esta idéia de ruído vem da imagem de que cotidianamente as relações entre
os agentes institucionais ocorre no interior de processos silenciosos até o
momento que a lógica funcional, predominante e instituída, seja rompida. Porém,
este rompimento é normalmente percebido como uma disfunção, como um desvio
do normal que deveria ocorrer.
Com ruído queremos introduzir a noção, baseado em Fernando Flores11, de
que a quebra do silêncio do cotidiano pode ser, e deve ser, percebido como a
presença de processos instituintes que não estão sendo contemplados pelo
modelo de organização e gestão do equipamento institucional em foco, mostrando
os distintos possíveis caminhar dos processos de ações dos agentes envolvidos, e,
portanto, abrindo possibilidades de interrogações sobre o modo instituído como se
opera o trabalho e o sentido de suas ações, naquele equipamento.
11
- Flores, F. - Inventando la empresa del siglo XXI, Hachete, Chile,
1989.
18
A possibilidade de escutar os ruídos do cotidiano institucional é parte de
ferramentas analisadoras dos processos institucionais e pode permitir a
reconstrução de novos modos de gerir e operar o trabalho em saúde. Permite
interrogar sobre a captura do trabalho vivo e sobre a constituição do processo
intercessor.
É neste sentido que gostaríamos de explorar tal caminho pelo lado da
constituição do espaço intercessor como lugar de vozes e de escutas, isto é, como
o lugar que revela, no interior do processo de trabalho em saúde, o encontro de
dois instituintes que querem falar e serem escutados em suas necessidades
demandas.
Os construtores de um dado espaço intercessor atuam instituintemente, e se
um dado modelo tecnoassistencial, como aquele que procura construir este
processo intercessor partilhado como um processo objetal (veja o que foi falado
mais atrás) não permite a plena expressão de um de seus partícipes, este não
some, não apaga a sua presença deste espaço, mas age “ocultamente” em
relação à possibilidade de sua não explicitação.
Quando, em um dado serviço de saúde, há o encontro de um usuário com
um trabalhador de saúde qualquer um deles ou mesmo um usuário coletivo
formase um jogo de necessidades no qual o usuário coloca pelo menos a sua
perspectiva de que naquele processo de “consumir” atos de saúde (ou pelo menos
o que ele entende por isso) vai haver um ganho seu em termos de controlar
problemas que identifica como necessidades de saúde e para os quais aquele
momento parece construir um caminho de solução. Mas solução para o quê?
Para várias coisas. Para aplacar aquilo que considera como um sofrimento,
tanto quanto para possibilitar que o seu “organismo” possa estar “bem”
funcionalmente para continuar caminhando na sua vida. Isto é, associa aquele
processo como uma possibilidade de retornar a um certo estado de exercício de
sua autonomia no seu modo de andar a sua vida.
19
Não muito estranhamente o trabalhador de saúde identifica aquele encontro
também como o lugar de realizar soluções para várias questões. Mas quais?
Depende dos interesses que o modelo de organização do trabalho em saúde
explicita. Depende do modo como socialmente as distintas necessidades do
processo de trabalho em saúde são capturadas pelo modelo tecnoassistencial.
Depende do universo ideológico do próprio trabalhador.
Assim, se for uma captura comprometida com um modelo médico
hegemônico vinculado à medicina tecnológica, que coloca a produção de
procedimentos como o principal produto a realizar a “finalidade” do trabalho em
saúde pelo lado do trabalhador de saúde a linha de força representada pelos
usuários será anulada por um processo de não escuta de sua atuação e pela
imposição, no espaço intercessor, da voz única deste modelo na qual o usuário
será só um “objeto” a viabilizar a ação de produção de procedimentos.
Ora, mesmo que isto ocorra, o usuário não deixará de estar ali e de
continuar “desejando” o que ele queria daquele momento. E se isto não for
viabilizado na produção dos atos pelo trabalhador de saúde, ele sai dali e vai atrás
de outro processo de consumo que lhe possa trazer a idéia de satisfação e de
produto/resultado realizado.
Em parte o usuário será conformado pelo processo de produção, mas na
testagem que a vida lhe coloca no seu caminhar, em parte este processo não
consegue contêlo plenamente (veja a imagem do intercessor partilhado e do
objetal).
Esta situação se apresenta como um processo gerador de ruídos e que
podem ser “gerencialmente” escutados pelos trabalhadores de saúde, ou mesmo
pelos usuários. Para tanto, podemos fazer perguntas para o modo como no
espaço intercessor se concretiza a produção de processos típicos deste espaço
enquanto um lugar de efetivação de ações suportadas por um universo de
“tecnologias leves”, de tecnologias de “relações” que se concretizam com a
20
produção de “produtos” simbólicos, básicos para operar este tipo de processo de
trabalho.
Destacamos como produtos deste tipo, à semelhança do jogo transferencial
nos processos psicanalíticos, o acolhimento e o vínculo que são construídos neste
espaço em ato, permanentemente. E estamos indicando que a pergunta sobre os
mesmos pode mostrar como que se dá a construção de um dado modelo tecno
assistencial do ponto de vista do jogo instituinte das necessidades entre o
trabalhador e o usuário. Revelando a situação vital ocupada pelo trabalho vivo em
ato no interior do processo de trabalho em saúde e evidenciando como no interior
dos processos cotidianos dos serviços se produzem as vozes, as escutas e os
silêncios, entre os trabalhadores e os usuários, expressos em formas definidas nos
modelos de atenção construídos no interior dos equipamentos de saúde.
Deste modo a busca é a de colocar sob interrogação o encontro
trabalhadorusuário como um poderoso processo revelador das distintas lógicas
que operam no interior dos modos como se trabalha em saúde, o que permite
perceber distintas linhas de fuga que podem abrir este processo a novos
significados éticopolíticos e operativos. Com estas interrogações podese procurar
colocar em cheque a natureza pública e privada deste encontro, os processos de
captura a que o trabalho vivo está subordinado e os tipos de interesses que
predominam neste espaço, os ocultamentos e “abafamentos”.
Criar ferramentas para um olhar analisador neste sentido, então, é
conseguir operar no interior destas próprias lógicas e tornálas ruidosas, e assim
temas públicos para o coletivo/“equipe de saúde”, inclusive nas suas relações com
os usuários.
Neste sentido, entendemos que há dispositivos “naturais” deste processo
descolados da própria tecnologia leve que opera nestes espaços intercessores,
como por exemplo o acolhimento, que tem um grande poder de gerar ruídos por
expor mais claramente a razão éticopolítica, e não só instrumental, que opera no
seu interior. Entretanto, podemos também criar dispositivos “artificiais” que
21
possam interrogar estes processos instituintes e instituídos; alguns experimentos
dos quais temos participado têm mostrado uma certa eficácia interessante no
repensar o trabalho em saúde.
Neste particular temos trabalhado com a
construção de ferramentas, como fluxogramas e redes de petições e
compromissos, analisadoras destes encontros singulares.
dos ruídos do cotidiano a novos modos de gerir e trabalhar em saúde
algumas ferramentas que armam os olhares analisadores
Com a compreensão destas questões, não fica difícil entender da
possibilidade de se criar analisadores institucionais sobre o espaço intercessor em
saúde, que permitam interrogar o modo como o trabalho vivo opera com esta
“tecnologia leve das relações” e como produz estes “produtos da intersecção”, que
consideramos como “bens relações” fundamentais em saúde; e que também
permitem analisar o modo como o processo de gestão do trabalho se realiza
apropriandose do espaço institucional da gestão organizacional, inclusive expondo
a dinâmica da relação de apropriação pública ou privada deste processo.
Através da interrogação que podemos realizar sobre o processo de trabalho
do ponto de vista, por exemplo, do acolhimento podemos demonstrar a
potencialidade deste caminho para repensar processo de trabalho em saúde e da
abertura que permite para se olhar o modo como os modelos de atenção capturam
o trabalho vivo em ato; potencialidade que se expõe nas distintas possibilidades de
linhas de fuga que podem se constituir no interior do processo produtivo e
gerencial.
Vale a pena, antes, falar um pouco sobre o que pode significar a perspectiva
de operar em um terreno que pretende criar “ferramentas” para intervir em
processos institucionais. Parecenos, que isto não deva ser muito próximo ao
modo como se atua em processos produtivos, mais diretamente vinculados à
realização de um produto material explícito e bem definido; além de ter algumas
22
implicações distintas sobre a compreensão do que deva ser entendimento sob a
ótica de saber tecnológico.
Como já dissemos em vários outros momentos, tecnologia não é confundida
aqui com instrumento (equipamento) tecnológico e nem é valorizada como algo
necessariamente positivo, pois damos a este termo uma imagem dos saberes que
permitem, em um processo de trabalho específico, operar sobre recursos na
realização de finalidades perseguidas e postas para este processo produtivo.
Deste modo, uma máquina como um computador não seria em si uma
tecnologia, mas um equipamento tecnológico expressão de uma tecnologia, que se
apresenta para nós como saberes que buscam na máquinacomputador uma
ferramenta que possibilita operar com processamentos rápidos e massivos de
dados, por exemplo. A tecnologia seria então o saber, ou saberes, que permitiram
construíla e que estão comprometidos com a realização de determinadas
finalidades previamente colocadas para os processos de trabalhos que lhe são
pertinentes.
Por isso, tratamos a clínica e a epidemiologia como saberes tecnológicos.
Por serem saberes que são produzidos de modo compromissado com a realização
de intervenções produtivas do trabalho humano sobre os “processos da vida, como
a saúde e a doença”. E, que estão, deste modo, imediatamente implicados com
processos de intervenção. São distintos, nesta dimensão, em relação a outros
saberes que não tenham esta implicação imediata.
Entretanto, isto não lhes retira a possibilidade de estarem também
produzindo conhecimento sobre a realidade, de modo não imediatamente
comprometidos com a ação operatória. Um saber tecnológico opera em uma dobra
na qual, de um lado expressa seu compromisso com a “razão instrumental”, e, de
um outro, com a “razão teórica”. Devendo, como tal, estar aberto às leituras de
seus pressupostos de construção, de suas intencionalidades e finalidades, em
ambas dimensões.
23
De um lado reverso, um saber que se proponha a ser conhecimento
científico mais do que tecnológico também nos apresenta esta dobra de revelar “o
mundo” e de permitir uma ação sobre o mesmo.
Mas, aqui estamos operando com saberes que têm uma distinção
importante a considerar, desde que, como um saber tecnológico, está
imediatamente referido e concretizado em processos de trabalhos bem definidos,
que expõem diretamente suas intencionalidades.
Entretanto, tudo indica que quando estamos diante de uma tecnologia do
tipo leve (como o acolhimento) a situação é um pouco distinta de quando estamos
perante uma tecnologia do tipo dura (como o realizar uma conduta totalmente
normalizada ou mesmo o processo incorporador de máquinasferramentas), e isto
nos coloca que no operar das leves, como a própria clínica ou os processos das
tecnologias das relações (como é o caso do acolhimento ou do vínculo), o
processo operatório é bem mais aberto ao fazer do trabalho vivo em ato. O que
também permitenos redefinir o conceito que temos de recursos escassos, pois
tecnologia leve nunca é escassa ela sempre é em processo, em produção. (Aqui
há que rever a noção cara às políticas de saúde pública que operam com o
conceito de escassez permanente e prioridade focal excludente).
Por isso, procurar ferramentas para operar sobre relações institucionais é
uma tarefa um pouco mais árdua do que estar tratando de um processo bem
definido e normatizado, pois vem impregnada de uma quase igual importância
tanto do seu lado de instrumentalizar a ação humana de intervir na realidade como
em um processo de trabalho, quanto do seu lado de estar revelando “o mundo” e
seus sentidos e significados para os “operadores/interventores”. Pois estamos
diante de uma situação muito parecida com a dinâmica do trabalho vivo na saúde
que nos coloca perante uma realidade operatória que é sempre um “em processo”,
um “dando”, no qual os homens são ao mesmo tempo operadores, sujeitos e
objetos dos trabalhosintervenções.
24
A perspectiva de construir analisadores ruidosos para compreender
processos de trabalho em saúde é marcada pela idéia pouco positiva de criar
dispositivos que tenham o compromisso com a abertura de linhas de fuga em
processos instituídos, mais do que com a produção de receitas sobre como
construir o trabalho de saúde correto e certo.
A criação destes dispositivos não obedece a um processo aleatório
qualquer, pois como já dissemos os mesmos estão marcados pelas distintas
lógicas instituintes que operam no interior dos processos de trabalho em saúde.
Assim, tomar os processos instituintes que operam no interior dos espaços
intercessores e tentar operar com ferramentasdispositivos que “abrem” estas
presenças lógicas é uma perspectiva vital para criar “olhares analisadores
ruidosos” sobre o modo como se constituem as práticas de saúde, suas
tecnologias e direcionalidades, e seus modelos de gestão.
Em algumas experiências em serviços que vivenciamos, estivemos diante
de uma situação problema que mostrava que um determinado grupo populacional
crianças desnutridas só tinham acesso aos serviços da rede básica de saúde
quando estavam “sem problema imediato”, pois sempre que apresentavam uma
“intercorrência” eram recusadas (nunca tinha vaga, filas enormes para chegarem à
recepção, etc...) e acabavam sendo atendidas em um “prontoatendimento”
qualquer, sem o mínimo compromisso médicosanitário e sem capacidade
resolutiva.
Diante de uma situação deste tipo consideramos como fundamental colocar
o conjunto dos trabalhadores das unidades de saúde em situação e produzindo um
certo conhecimento sobre o seu cotidiano, sobre o seu modo de trabalhar. Para
que, a partir de então, interrogassem o seu cotidiano e pensassem sobre a
situação problema.
25
Trabalhamos intensamente uma ferramenta analisadora, o fluxograma
analisador12, e fizemos coletivamente uma análise dos processos de acolhimento
que permeavam o modelo de atenção em pauta.
Acolhimento que inclusive adquiriu nas discussões uma dupla dimensão:
pois, se de um lado era uma etapa do conjunto do processo de trabalho, realizado
em serviços concretos, em particular no momento da recepção destes serviços,
que estabelecia o modo como o serviço fazia o seu primeiro contato com a sua
clientela, em um processo mútuo de reconhecimento onde o usuário se
reconhecia como cliente daquele serviço e o serviço o reconhecia como um
usuário com direitos em relação aos serviços realizados criando suas barreiras e
mecanismos de acesso; por outro lado era também uma tecnologia leve do
processo intercessor do trabalho em saúde que ocorria em todos os lugares em
que se constituíam os encontros trabalhadoresusuários.
Nestas experiências, vivenciamos um processo coletivo diretamente
comprometido com a busca de ferramentas tecnológicas que procuravam mostrar
com mais clareza o nosso papel de construtor e/ou fazedor de processos
analisadores, que permitissem colocar em questão o espaço da gestão do
processo de trabalho, lugar privilegiado de realização do trabalho vivo em ato,
junto ao conjunto do processo de trabalho em si.
Com isso conseguimos criar modos de operar no interior do processo de
trabalho, nas unidades de saúde, no espaço dos “autogovernos”, situações
interrogadoras da forma como opera o espaço da gestão (onde se decide a partir
de pressupostos éticopolíticos, que se refletem em lemas e missões, onde se
intervém de modo público e/ou privado, com compromissos de responsabilizações
mais ou menos aderidas aos usuários, etc...).
Além disso, colocouse em cheque tanto o modo como se desdobravam as
realizações de um trabalho em ato com um outro trabalho em ato, cristalizados nos
processos intercessores, destes trabalhos, como construção conjunta trabalhador
12
- Veja com mais precisão no texto “Agir em Saúde”, op. cit.,
26
trabalhador; quanto aqueles cristalizados pela relação trabalhadorusuário
expressos nas práticas produtoras do acolhimento e do vínculo/responsabilização.
Permitindo assim, analisar o quanto os trabalhadores estão efetivamente
compromissados, ou não, com os processos de "autonomização" do usuário no
seu modo de andar a vida, e com as ações de defesa da vida individual e coletiva.
Esta busca de ferramentas disparadoras destes processos de interrogação
sobre o trabalho vivo em ato, que podem abrilo para novos modos instituintes, e a
possibilidade de seu compartilhamento público no interior dos coletivos de
trabalhadores foi o grande desafio destes trabalhos experimentados em serviços.
No que toca em particular a relação de intersecção de um trabalho em ato
com outro em ato (trabalhadortrabalhador), operamos com uma ferramenta
analisadora distinta do fluxograma, e que é a rede de petição e compromisso, o
que permitiu abrir a caixa preta das relações micropolíticas institucionais,
reveladora dos tipos efetivos de contratos de relações que os vários agentes
institucionais em cena realizam entre si, em um processo silencioso. Muitos dos
quais obedecendo a um padrão do tipo “pacto da mediocridade” no qual o usuário
sai sempre como o grande prejudicado.
Esta rede pode ser organizada em qualquer situação na qual se identifique
um certo jogo entre forças institucionais bem territorializadas que realizam e
cristalizam interesses de distintos tipos e que se organizam com linhas de forças
que disputam as várias lógicas que a instituição esta expressando, explícita ou
implicitamente. De um modo genérico uma rede de petição e compromisso para a
análise do modelo de gestão do processo de trabalho e do equipamento
institucional deve ordenar, para interrogar, uma rede de expectativas entre as
unidades produtoras que atuam no interior de um equipamento institucional
governando recursos e fins.
Estes processos expõem privilegiadamente a dinâmica de prestador
consumidor intraequipamento, porém podemos também com o mesmo abrir o
jogo de expectativas envolvido na relação entre o serviço e o usuário final das
27
práticas de saúde, procurando problematizar as próprias disputas entre o que são
necessidades do ponto de vista do modelo de atenção e do ponto de vista do
usuário, abrindo uma reflexão sobre representações sociais do sofrimento como
doença e dos agravos como problemas de saúde e o seu modo de incorporação
pelos serviços. Para em última instância perguntar: é deste jeito que vale a pena
trabalhar? é isto mesmo que queremos produzir como resultados?
Neste sentido, e para terem possibilidade de viabilizar as respostas às
questões acima, o conjunto das ferramentas analisadoras devem ter a capacidade
de instrumentalizar o conjunto dos trabalhadores, como gestores efetivos do
processo de trabalho, em pelo menos três campos de interrogações sobre os
modelos de atenção e os processos gerenciais, e que são:
a. devem ter a capacidade e sensibilidade, como qualquer instrumento, para
abrir a caixa preta sobre “o como” se trabalha, e neste sentido revelar
qualitativamente o modo de operar cotidianamente a construção de um certo
modelo de atenção em serviços concretos;
b. devem ter a capacidade e sensibilidade para revelar “o quê” este modo de
trabalhar está produzindo, e assim mostrar em que tipo de produtos e resultados
se desemboca com este modo de operar o cotidiano do trabalho em um dado
serviço;
c. devem também, pelo menos, ter a capacidade e sensibilidade de permitir
a interrogação sobre o “para quê” se está trabalhando, tentando revelar os
interesses efetivos que se impõem sobre a organização e realização cotidiana dos
modelos de atenção nos diferentes serviços; este momento é privilegiadamente
uma interrogação sobre os princípios éticopolíticos que comandam a existência de
um serviço de saúde.
C CONCLUSÃO
28
Com toda esta análise e exemplificações estamos querendo demonstrar que
as distintas experiências, que buscam a mudança efetiva do processo de trabalho
em saúde, têm necessidade de incorporar novas questões ao nível dos processos
micropolíticos do trabalho em saúde.
Destacamos que as relações macro e micropolíticas na saúde encontramse
nos espaços de gestão do processo de trabalho e das organizações de saúde, e
que as configurações que adquirem passam necessariamente pela presença do
trabalho vivo em ato.
Destacamos, também, que mais do que questionar o que ocorre nos
serviços a partir de um modelo “a priori” de organização do processo de trabalho
em saúde, que dispute com o já dado, o já instituído, devemos é desenvolver a
capacidade de criar interrogações sobre o que está ocorrendo, abrindo
possibilidades do trabalhador coletivo inventar modos novos e singulares de
realizar o trabalho em saúde em situações concretas.
Procurando criar nos trabalhadores, através do uso de dispositivos
interrogadores, a possibilidade de refletirem sobre duas questões chave para a
configuração de qualquer modelo de atenção preocupado centralmente com o
usuário:
Uma, que diz respeito ao modo como se usa privadamente com um
compromisso com o coletivo de forma restritiva e com uma maneira de se
responsabilizar e prestar contas do que se faz dentro de limites do tipo corporativo
a capacidade e autonomia que todo trabalhador de saúde tem de “autogovernar”
o seu trabalho, por ser como trabalhador em ação o próprio trabalho vivo em ato.
E, neste sentido podendose interrogar a essência do modo como vem se
instituindo a gestão do processo de trabalho, e a que interesses e
intencionalidades ele obedece;
e, outra, que coloca em dúvida o sentido dos modelos instituídos
capturadores, seus conteúdos tecnológicos e possibilidades, abrindo a chance de
pensar sobre seus pressupostos éticopolíticos, e sobre os procedimentos eficazes
29
na produção dos resultados pretendidos, com a captura que fazem do trabalho
vivo em ato; abrindo dúvidas quanto aos paradigmas perseguidos, permitindo
interrogar
mais
sistematicamente
os
modelos
que
têm
servidos
como
predominantes e seus possíveis limites no modo como o trabalho vivo vem se
conformando no seu interior.
Com estas descrições o que temos interrogado e levado a campo é a
relação entre o trabalho vivo em ato que é capturado por estes modelos e a
possibilidade de que o mesmo seja desterritorializado e (ré)capturado para gerar o
oposto, isto é, um melhor equacionamento do uso dos meios e dos benefícios
produzidos e uma diminuição da dependência, gerandose maior autonomia dos
"usuários" nos seus modos de andar as suas vidas.
